Santa Dica: conheça a história por trás do movimento messiânico de Goiás

Benedita Cypriano Gomes, conhecida como Santa Dica de Goiás, foi uma mulher natural de Lagolândia (distrito pertencente ao município de Pirenópolis, estado de Goiás), nascida no ano de 1903, cuja atuação enquanto liderança comunitária e religiosa lhe rendeu grande fama e curiosidade geral. Sua história hoje é amplamente estudada sob a perspectiva de um movimento messiânico.

Para que o leitor possa compreender a importância do fenômeno de Santa Dica e a motivação de seus estudos levantarem grandes curiosidades e mistérios, devemos, portanto, entender o porquê de sua história ser estudada sob a perspectiva de um movimento messiânico.

A história de Benedita, em muito, se assemelha aos personagens Antônio Conselheiro (Canudos) e Beato José Maria (Contestado), figuras conhecidas por desempenhar ações políticas bastante específicas, conhecidas por supostamente aplicarem curas milagrosas e trazerem consigo profecias, geralmente se apresentam ou são aclamados como um enviado de Deus.

Santa Dica, em sua experiência em Lagolândia, apresentou consigo todas essas características, e para além do misticismo intrínseco à sua história, sua luta política também carregou características sociais de atenção ao bem comum muito agudas.

Tais como as experiências de Antônio Conselheiro e Beato José Maria, Benedita também lutou contra o sistema dominante de sua época, exigindo um uso equitativo das terras e desenvolvendo um trabalho social ativo no seu meio comunitário.

Podemos aqui notar que a questão do misticismo de tais experiências encontra eco na própria situação política, fazendo com que o personagem messiânico encontre um terreno vasto para desempenhar suas características, tal como Leonildo Silveira Campos argumenta: “O aparecimento de um messias se dá quando uma religião instituída ou as formas de ordenação de uma sociedade não mais atendem às demandas de seus membros, especialmente dos que se sentem excluídos, rejeitados ou que vivem à margem dos bons resultados do funcionamento dessa sociedade.” (CAMPOS; 2016; p.133).

A estes fenômenos, que misturam misticismo de um personagem ou grupo dentro de um escopo de atuação política e social, a historiografia estuda sob a perspectiva de um movimento messiânico.

Mistérios e curiosidades sobre sua história remontam desde o seu nascimento. A veneração a Benedita Cipriano teve início ainda na sua infância, quando um episódio marcante chamou a atenção da comunidade.

Segundo relatos, a menina teria sido dada como morta, mas retornou à vida. Sua irmã, Beringélia, detalha que foram empregadas diversas técnicas de reanimação, sem sucesso, até que, inexplicavelmente, Benedita voltou a respirar.

Tal fenômeno veio a acontecer pelo menos outras três vezes durante sua vida, apesar da medicina argumentar que tais acontecimentos podem se tratar de casos de catalepsia.

Mesmo assim, a jovem criou ao seu redor um ambiente de peregrinação, devoção e acolhimento a pessoas que buscavam se curar de enfermidades, papel que ela desempenhou de forma ativa por toda sua vida.

O suposto poder de curar pessoas enfermas de forma sobrenatural e ordenar o convívio comunitário em Lagolândia desde sempre fazia de Santa Dica um personagem singular na história Goiana.

A ascensão de Benedita trouxe primeiramente um conflito com a Igreja Católica, que buscava à época aproximar seus fiéis da doutrina romana, e via fenômenos como o de Santa Dica, algo que transformava o catolicismo em algo distorcido, supersticioso e idólatra.

Porém, vale salientar que, ainda no início do século XX, a Igreja Católica não dispunha de uma grande quantidade de clérigos para desempenhar um trabalho consistente de evangelização. Com isso, a população encontrava, à sua maneira, modos de expressar a sua fé, que por vezes não coadunava de maneira completa com a doutrina católica.

Benedita iniciou um processo de embate também com grandes fazendeiros locais. Em sua comunidade, ela pregava o uso comum da terra e um trabalho compartilhado entre todos.

A existência de sua comunidade, para além de lhe render importância política, criava um impacto econômico na região, pois se tornaram escassos trabalhadores que estavam dispostos a trabalhar em grandes latifúndios.

Todo esse contingente que estava sob influência de Benedita, para além dos aspectos relacionados à influência política, dava a ela também uma influência militar, pois aqueles que estavam à sua volta a protegiam de ameaças externas, advindas dos diversos inimigos intrínsecos à sua atuação.

Dica e sua comunidade foram arrastadas para o conflito da Coluna Prestes em 1925. O senador Antônio Ramos Caiado e outros coronéis a convocaram para defender o governo contra os rebeldes.

A comunidade de Benedita contava com aproximadamente 400 homens armados. Ao chegar na capital goiana da época (Cidade de Goiás), Benedita percebeu que foi alvo de uma emboscada.

Ela e sua comunidade foram desarmados e tiveram de voltar a Lagolândia à pé. Pouco tempo depois, em outubro 1925, Lagolândia sofreu uma invasão da força pública do estado.

Relatos apontam que foram algo entre 15 mortos (dentre eles o tio de Benedita, José Cipriano Gomes). Tal fato ocorreu pelo medo do movimento de Santa Dica se tornar algo parecido com a experiência de Canudos e trazer transtornos irremediáveis para a ordem política vigente.

A fé dos seguidores de Santa Dica se fortaleceu diante dos relatos de seus supostos milagres durante o ataque. As balas, diziam eles, não conseguiam tocá-la, e forças sobrenaturais a protegiam.

Os projéteis supostamente ricocheteavam ao ir de encontro com seu vestido, e anjos que vinham ao seu encontro não deixavam seus seguidores saírem feridos.

Para evitar a prisão, Dica se escondeu na mata por cerca de uma semana. Quando finalmente se entregou, foi julgada e condenada a um ano e dois meses de prisão, sob as acusações de estelionato, uso desautorizado da medicina, homicídios culposos e desrespeito às autoridades civis.

No entanto, após cumprir nove meses, ela foi libertada em 1926 e proibida de retornar à Lagolândia. Após sua liberação, que se deu mediante a um laudo da defesa, que comprovava supostos distúrbios psiquiátricos, intervenção do governo de Goiás e o STJ-GO, que considerou a prisão e acusações improcedentes, e também uma pressão popular que reprovou o ataque à Lagolândia, Dica aceitou o convite da Liga Espírita (na qual havia feito um apelo ao presidente de Goiás à época, Brasil Caiado, pedindo sua liberdade) para ir ao Rio de Janeiro.

Lá, conheceu o jornalista Mário Mendes, com quem se casou em 1928. A atuação de Dica não parou por aí, em 1932 ela se juntou às tropas federais e estaduais, para lutar contra os paulistas na Revolução Constitucionalista, sendo ela aliada de Ludovico (interventor de Vargas) e inimiga dos Caiado, tirados do poder pelo golpe varguista.

Com autorização para usar uniformes militares, Dica liderou um grupo de 150 homens no front. Para facilitar a coordenação de suas tropas, compostas majoritariamente por analfabetos, ela implementou um sistema: amarrou palha em um dos pés de cada soldado, diferenciando a direita da esquerda, assim garantindo um melhor desempenho em combate.

Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, Dica conheceu Juscelino Kubitschek, que atuava na ocasião como médico.

Algumas lendas apontam que Benedita previu o fato de que, no futuro, Juscelino seria eleito presidente do Brasil. A historiografia não pode apontar com certeza a veracidade deste fato (na verdade, boa parte da história de Dica, a partir de 1926, carece de estudos científicos), mas o que se sabe é que posteriormente ambos desenvolveram uma grande amizade.

Relatos também apontam que supostamente Juscelino teria ido visitar Dica em Goiânia, na década de 60, para levar uma filha que estava enferma, buscando uma cura milagrosa de Santa Dica.

A vida de Benedita foi cercada de dificuldades, sempre foi renegada por seu pai, que não via com bons olhos os poderes e ações de sua filha.

Além da prisão, foi violentada sexualmente em 1925 por um de seus seguidores (Manuel José de Torres, vulgo “Cacheado”), fato que supostamente veio a acabar temporariamente com seus poderes milagrosos, e na década de 1930 chegou a ser “vendida” pelo seu marido (Mário Mendes), que usou tal subterfúgio para escapar de dívidas.

Chegando a ser conhecida como a “Joana d’Arc brasileira”, Benedita Cipriano Gomes não resistiu a uma cirurgia no intestino, e faleceu em 9 de novembro de 1970 em Goiânia.

Conforme seu desejo, foi sepultada em frente à sua casa, em uma gameleira em Lagolândia, local que se tornou um ponto de visitação para aqueles que admiram sua história.