Em NOVA Berlim 2099, megaempresas controlam o mundo em uma narrativa densa e pulsante. Saiba por que essa distopia merece destaque no cenário brasileiro.
“Megaempresas agora governam o planeta — ninguém sabe se isso é evolução ou o prenúncio de nossa própria ruína.”
O livro NOVA Berlim 2099 é um representante clássico — e confiante — do gênero cyberpunk, um dos meus tipos de texto favoritos. E, como é típico desse estilo de narrativa, mergulhamos em um universo distópico onde a tecnologia avança em proporções alucinantes, mas a condição humana permanece miserável, dilacerada e cada vez mais desorientada. A obra oferece tudo o que se espera quando o capitalismo é elevado à enésima potência: implantes cibernéticos, manipulação genética, prolongamento artificial da vida, criminalidade institucionalizada e uma sociedade tão fragmentada que já não possui nem vestígios de ética, religião ou sentido de comunidade. Aqui, o objetivo comum de quase todos os personagens parece ser um só: sobreviver ao dia seguinte — e, se possível, acumular algum lucro durante o processo.
Esse é um dos pilares fundamentais do cyberpunk: o contraste brutal entre a sofisticação tecnológica e a falência moral. Desde Neuromancer (1984), de William Gibson, até o imaginário visual de Blade Runner (1982), o gênero tem se destacado por retratar sociedades onde o avanço das máquinas não significou progresso humano, mas, ao contrário, acentuou nossas misérias. Obras como o mangá Akira, de Katsuhiro Otomo, ou produções mais recentes como Cyberpunk: Edgerunners, carregam esse mesmo espírito — de resistência, de ruína e de identidade fragmentada.
NOVA Berlim 2099 não tenta reinventar essa estética — e, felizmente, nem precisa. Ao invés de fugir dos clichês do gênero, a obra os abraça com competência, demonstrando que o valor de uma narrativa não reside apenas na inovação do cenário, mas na maneira como esse cenário é construído, explorado e, principalmente, vivido pelos personagens. O livro entende bem que o cyberpunk não é só sobre chips e neon, mas sobre pessoas tentando encontrar algum vestígio de humanidade em um mundo que parece ter esquecido o que isso significa.
A ambientação é marcada por eventos catastróficos que servem como gatilhos para a derrocada da civilização como a conhecíamos. A Terceira Guerra Mundial, ocorrida em 2023, destrói a maioria das grandes potências e implodiria qualquer tentativa de retorno à velha ordem. Dois anos depois, o planeta ainda é assolado por um cataclismo natural de proporções bíblicas: o Grande Terremoto. A partir disso, o mundo entra num processo irreversível de reconfiguração — social, geográfica, espiritual. O colapso dos Estados-nação abre espaço para o surgimento das megaempresas como principais forças dominantes. O vácuo de poder é rapidamente ocupado por conglomerados corporativos que não respondem a parlamentos, constituições ou ideologias — apenas ao lucro.
Essa nova ordem mundial corporativa opera à margem da moral, utilizando guerras proxy e manipulações ideológicas para enfraquecer concorrentes sem recorrer a confrontos diretos. É uma espécie de Guerra Fria 2.0, onde os mísseis foram substituídos por sabotagens digitais, campanhas desinformativas e grupos paramilitares com patrocínio corporativo. A lógica do mercado coloniza a política, a religião, a cultura — e até o espírito.
Nesse contexto distorcido, acompanhamos os protagonistas Adler, Lweiz, Moss e Anderson — membros da equipe de segurança da Dan-ho Enterprises, uma das corporações mais influentes desse mundo novo e brutal. É através do olhar desse grupo que a narrativa se desenrola. Cada personagem tem uma personalidade marcada, com traços individuais e conflitos próprios que enriquecem a trama, especialmente nos momentos de tensão interna. A força da história não está apenas nas cenas de ação — que são bem descritas e ritmadas — mas na interação entre esses quatro, cujos diálogos revelam tanto o passado conturbado quanto os valores deturpados que ainda sustentam suas decisões. É raro encontrar um livro do gênero em que a química entre os personagens funcione tão bem como aqui, isso é um mérito inegável de Léo.
A narrativa se organiza em três grandes arcos, iniciando com a tentativa de invasão da sede da Dan-ho por uma milícia religiosa supostamente financiada por uma corporação rival. Esse evento desencadeia uma série de desdobramentos, que vão do campo de batalha às intrigas internas de empresas que, mais do que nunca, se comportam como nações soberanas. A estrutura da história é funcional e não se perde em digressões — ao contrário, é enxuta e objetiva, o que facilita a imersão mesmo para leitores menos acostumados ao vocabulário do gênero.
Ainda assim, um ponto que merece crítica — embora não comprometa a qualidade geral do livro — é o posicionamento editorial das informações de apoio. Na edição que li, dados importantes sobre o funcionamento do universo, a origem das megaempresas, os eventos históricos e as descrições de armamentos aparecem apenas ao final do livro. Isso prejudica a experiência, especialmente ao considerar que o forte do texto é a dinâmica entre os personagens, o que acaba prejudicando um pouco o worldbuilding. Explicações e inserções de informações durante a leitura teriam enriquecido a imersão, permitindo um melhor aproveitamento dos detalhes que o autor claramente se empenhou em construir.
No entanto, esse detalhe não diminui a competência da obra. A escrita de Léo é segura, fluida e, acima de tudo, engajada com o gênero que escolheu explorar. Ele não tenta forçar originalidade onde ela não é necessária, e isso é uma qualidade rara. O autor compreende que, no cyberpunk, o que realmente importa não é reinventar o cenário, mas fazer com que ele pulse, respire e ameace ruir a qualquer momento.
Em resumo, NOVA Berlim 2099 é uma leitura recomendável para quem já tem alguma familiaridade com o gênero e também para quem deseja dar os primeiros passos nesse universo. O livro entrega uma narrativa sólida, personagens carismáticos e uma crítica social contundente — ainda que sutil — sobre o destino de um mundo governado pelo capital desumanizado. Em um mar de obras que tentam parecer inovadoras sem conseguir sustentar suas ideias, Léo escolhe o caminho da maturidade narrativa: oferece uma distopia reconhecível, bem construída e que sabe exatamente onde quer chegar. Para mim, é uma das melhores produções cyberpunk brasileiras contemporâneas — e um bom sinal de que ainda há muito a ser dito nesse gênero sombrio e fascinante.
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