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Uma reflexão a partir de Peter Thiel, Arthur C. Clarke e Nietzsche

|ㅤ17 de junho de 2025
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A partir das ideias de Peter Thiel, Arthur C. Clarke e Nietzsche, o texto reflete sobre como a humanidade perdeu a crença na inovação e no desconhecido.
Uma reflexão a partir de Peter Thiel, Arthur C. Clarke e Nietzsche

Peter Thiel – A Humanidade Que Desacreditou de Si Mesma

           Ler Zero a Um, de Peter Thiel, foi mais do que atravessar páginas de conselhos empresariais: foi um tapa silencioso. Um incômodo intelectual. O livro me provocou uma pergunta inquieta: quando foi que a humanidade parou de acreditar em si mesma? Em sua capacidade de criar o novo, de buscar o que ainda não está escrito, de desafiar os limites da realidade?

            Thiel fala sobre inovação, startups e o valor de pensar diferente. Mas o que mais me marcou foi sua denúncia da nossa atual descrença nos segredos. Isso mesmo, segredos. Aquela ideia quase ingênua, quase infantil, de que o mundo ainda guarda mistérios, que há coisas esperando para serem descobertas, que nem tudo foi feito, nem tudo foi dito, nem tudo foi revelado. Essa crença morreu. E isso deveria nos assustar.

            Peter aponta para uma verdade que parece invisível: vivemos em um mundo que só aceita o que pode ser medido, calculado e comparado. Tudo precisa fazer sentido imediato. As pessoas não querem mais buscar respostas; querem aceitar as que o sistema fornece. E isso se manifesta de várias formas.

            Na religião ambientalista, como ele diz, onde questionar qualquer dogma ecológico é tratado como blasfêmia. No livre mercado, onde os preços são encarados como verdades absolutas; “o mercado sabe mais do que você”. Na ciência das estatísticas, que valoriza apenas o que pode ser mensurado, mas se recusa a lidar com o que é misterioso, incerto, intuitivo.

            Thiel também observa que não há mais fronteiras a explorar. “Não existem espaços vazios no mapa”, ele diz. O espírito aventureiro morreu porque tudo já foi cartografado. A última fronteira, os oceanos profundos, continua inexplorada, mas o interesse em desbravá-la é nulo. A humanidade perdeu a curiosidade que a moveu durante séculos. E isso me lembrou outra obra. Ao citar o matemático e ex-professor Theodore John Kaczynski — conhecido por sua trajetória sombria como o “Unabomber” — que, apesar de seu extremismo, articulou uma verdade perturbadora sobre a condição humana: “Todo indivíduo precisa de metas cujo alcance requeira esforço, e precisa triunfar na realização de ao menos algumas de suas metas.”

            A partir dessa provocação, Thiel elabora uma crítica contundente à forma como abandonamos a busca por segredos, ou seja, por verdades ocultas, inovações disruptivas, ideias originais. Segundo ele, quatro tendências modernas eliminam nossa crença de que ainda há algo profundo a ser descoberto. O Incrementalismo: a obsessão pelo progresso gradual, baseado em estudo e recompensa previsível. Em vez de revoluções, preferimos atualizações de software. A Aversão ao risco: quem busca segurança absoluta jamais ousará explorar o desconhecido. A lógica é simples: se você não quer errar, nem tente algo novo. A Complacência: as elites, ironicamente, têm mais liberdade intelectual, mas preferem acumular dividendos do que já foi criado, em vez de buscar o que ainda não foi pensado. E, Planura: a globalização achatou o imaginário coletivo. Se o mundo inteiro está conectado, então “com certeza alguém já pensou nisso antes”, e esse pensamento paralisa.

            Esses quatro venenos silenciosos corroem o espírito da descoberta. Já não acreditamos que existam segredos dignos de serem perseguidos e, talvez por isso, nos contentamos com cópias recicladas de ideias medianas.

            Arthur C. Clarke, em O Fim da Infância, escreve sobre alienígenas que chegam à Terra, resolvem todos os nossos problemas e, com isso, anulam toda nossa ambição. Fome, guerra, doenças: tudo acaba. Mas, em troca, os humanos perdem o direito de explorar o espaço. “As estrelas não são para os homens”, dizem os Senhores Supremos. E ninguém reage.

            Clarke desenha uma utopia mórbida. O mundo se torna perfeito, mas vazio. A humanidade atinge o conforto máximo, e com ele, a completa estagnação. É um retrato brutal do que acontece quando o progresso técnico não é acompanhado por um progresso espiritual.

            E aqui tudo começa a fazer sentido. Clarke, Thiel e… Nietzsche. Pode parecer improvável, mas há sentido em aproximar autores tão diferentes.

            Friedrich, em sua crítica feroz ao homem moderno, já previa esse estado de apatia existencial. Para ele, o pior não é o sofrimento, é o tédio. É a vida sem sentido. É a aceitação cega da ordem vigente. Nietzsche chamou isso de o “último homem”: aquele que não quer mais lutar, que teme qualquer dor, que rejeita o risco. Um ser humano domesticado, medíocre, satisfeito com pequenos prazeres e sem qualquer desejo de superação.

            O que Thiel descreve com termos econômicos e filosóficos, Nietzsche gritou com desespero existencial: estamos nos tornando incapazes de criar, porque já não acreditamos que há algo a ser criado.

            Essa descrença generalizada é, para mim, um dos maiores males do nosso tempo. Ela não se apresenta com bombas ou censura. Não precisa. Basta convencer as pessoas de que tudo já está resolvido, que tudo já foi dito, que a inovação real é impossível. Assim, ninguém tenta mais nada de verdade.

            A planura global de que fala Thiel, onde o pensamento dominante é: “se alguém no mundo já fez isso, por que eu faria?”, é o cemitério da criatividade. É a negação da coragem. É a morte da ambição humana.

            Esse texto não é um ataque à modernidade. É um lamento. Um desabafo. Uma inquietação de alguém que, ao ler Peter Thiel, Zero a Um, enxergou além da lógica empresarial e viu um sintoma civilizacional. Que lembrou da ficção de Clarke e percebeu o quão perto estamos daquele futuro sem alma. Que voltou a Nietzsche e entendeu que a luta continua sendo espiritual — sempre foi.

            A humanidade desacreditou de si mesma. Não por falta de recursos. Não por limitações técnicas. Mas por medo. Medo de falhar. Medo de tentar. Medo de descobrir algo que a tire do conforto. Vivemos, segundo Thiel, num paradoxo moderno: reduzidos a fazer o que qualquer criança pode executar, mas desencorajados a tentar o que nem Einstein ousaria sozinho.

            Ainda acredito que existam segredos. E que vale a pena buscá-los. Ainda acredito que o novo não nasce do algoritmo, mas da inquietação. Ainda acredito que é possível criar do zero, mas para isso, é preciso querer mais do que repetir fórmulas. “Do partido comunista aos Hare Krishnas, as pessoas achavam que existia uma vanguarda esclarecida que mostraria o caminho da verdade. Mas isso se perdeu.” O niilismo torna-se cada vez mais palpável, por diversos motivos, inclusive os apontados por Byung-Chul Han em sua análise da chamada “sociedade paliativa”. Uma humanidade que evita o desconforto, o risco, o mistério, também abandona o sentido. O sentido humano de sentir.

            Thiel nos convida a pensar diferente. Clarke nos avisa o que acontece quando abrimos mão disso. E Nietzsche exige que sejamos fortes o bastante para suportar o fardo da grandeza. No fim, é disso que se trata: não aceitar que já somos tudo o que poderíamos ser. Ler Zero a Um é mais do que folhear um livro: é uma lição sobre o que evitar e um mapa do que perseguir.

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