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O Feudo do Mito: Poder e Liturgia no Bolsonarismo

|ㅤ13 de junho de 2025
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O conflito atual representa mais do que uma guerra: é uma tragédia em Gaza transmitido em tempo real, diante da omissão global.
Liturgia no Bolsonarismo" descreve a construção simbólica e quase religiosa do movimento político liderado por Jair Bolsonaro.

A história jamais é neutra

            Caros legentes, a gênese do bolsonarismo não nasce como semente isolada, mas brota do solo ressequido de um modelo político em colapso. Seu prenúncio se revela nas fissuras das Jornadas, junho de 2013 — um clamor difuso que abriu o véu sobre uma nação fatigada, onde o desencanto com os partidos tradicionais transmutou-se em rejeição. Do silêncio emergem os espectros da extrema-direita, vozes soterradas desde a redemocratização, agora reencarnadas com fúria e farda. No vazio das utopias progressistas, ergue-se o ídolo do ressentimento — a antítese política mascarada de redenção.

            O bolsonarismo transcende Jair Bolsonaro — é o sintoma de uma era enferma. Um movimento amorfo e contraditório, tecido com os fios do antipetismo visceral, do conservadorismo moralista e de um liberalismo de ocasião. Sua força não está na coerência ideológica, mas na capacidade de agregar o ressentimento dos órfãos da política. Alimentado pelas redes sociais, influencers-sacerdotes do caos e uma narrativa bélica que invoca inimigos mitológicos — comunistas, feministas, ambientalistas, professores, artistas. Sua retórica segrega. Não argumenta, esbraveja.

            Bolsonaro foi menos o artífice e mais o artefato: um avatar tosco de um tempo em que a democracia se dissolvia sob aplausos. O impeachment de Dilma, a erosão do sentido de “golpe”, e a complacência das instituições foram prenúncios do colapso. No caldo da crise política, da fratura social e da guerra simbólica, fermentou-se o bolsonarismo — um espírito do tempo que ainda assombra a república.

            Nesse movimento há uma arquitetura subterrânea de poder — não o que avança, mas o que conserva o entulho do passado. Se o petismo molda cultura e imaginário com engenho gramsciano, o bolsonarismo é instintivo e arcaico: sua ossatura lembra a de um feudo. Um senhor da guerra no trono simbólico, cercado por clero neopentecostal, nobres militares, cavaleiros digitais com espadas em forma de hashtags, e a plebe — multidão de servos emocionais que veneram o mito.

            Não é o caos desordenado, mas uma ordem regressiva. Uma engrenagem tosca que mantém o motor ligado na marcha do atraso. É hora de lançar luz sobre os rostos mais emblemáticos desse teatro da dissonância.

O Clã Bolsonaro – Segunda Ordem

            Ergue-se um núcleo duro em torno da figura de Jair Bolsonaro — um clã de primeira ordem, forjado no sangue e selado pela fidelidade. Contudo, há camadas mais sutis e fundamentais.

            Assim se delineia o “clã de segunda ordem” — sacerdotes civis e soldados ideológicos, alheios ao vínculo consanguíneo, mas que comungam da mesma visão messiânica. São intérpretes do dogma, arautos do ressentimento e arquitetos do discurso, sustentando o corpo simbólico do bolsonarismo em diferentes frentes.

            Silas Malafaia é um operador político do bolsonarismo na lógica religiosa evangélica. Usa sua autoridade simbólica para fabricar um discurso moralista, demoniza inimigos, transforma Bolsonaro em “escolhido por Deus” e ancora o projeto autoritário em valores cristãos distorcidos. É conselheiro próximo, mobilizador de fiéis e linha de frente na guerra simbólica. Nunca foi candidato, mas atua como “cabo eleitoral de Deus”, entre igrejas, redes sociais e Brasília. Sua projeção é continuar como elo espiritual entre o núcleo duro e o eleitorado evangélico.

            Tarcísio de Freitas foi alçado ao protagonismo nacional sob Bolsonaro, que o nomeou ministro. Incorporou a retórica bolsonarista e, em 2022, venceu em São Paulo com apoio dos evangélicos e do agronegócio. Representa o braço “moderado” do clã, capaz de dialogar com o empresariado sem abandonar os pilares ideológicos. É o herdeiro doutrinado, preparado para manter a máquina em funcionamento.

            Romeu Zema ascendeu com um discurso de gestão e rejeição à “velha política”, mas passou a adotar posturas bolsonaristas. Em 2022, apoiou Bolsonaro e se tornou nome cortejado pela direita radical. No clã, ocupa o papel de liberal de fachada, com aparência de racionalidade econômica, mas repetindo o populismo autoritário. Sua projeção é disputar como vice ou plano B numa chapa conservadora.

            Ricardo Salles foi rosto radical do bolsonarismo como ministro do Meio Ambiente. Defensor do “passar a boiada”, aproximou o bolsonarismo do agronegócio e do garimpo ilegal. No clã, é o braço ideológico e pragmático que atua no discurso e na ação direta. Mantém-se forte no núcleo duro, com pretensões legislativas e eventual retorno a cargos estratégicos.

O Clã Bolsonaro – Primeira Ordem

            Michelle Bolsonaro tornou-se símbolo do bolsonarismo, representando a “mulher de fé” e ponte com os evangélicos. Assumiu papel messiânico, apresentada como “a mulher que ora pelo presidente”. É o elo entre Bolsonaro e o neopentecostalismo feminino, peça-chave no avanço do projeto teocrático do bolsonarismo.

            Flávio Bolsonaro é o herdeiro político direto, elo com o centrão e operador político institucional. Eleito senador em 2018, enfrenta investigações que arranham a imagem da família. Atua como fiador político do bolsonarismo tradicional.

            Carlos Bolsonaro é o arquiteto digital do bolsonarismo. Vereador desde os 17, estruturou a militância virtual do pai. Opera o “gabinete do ódio” e define tons, estratégias e, muitas vezes, a voz de Jair nas redes. É guardião do “espírito puro” do bolsonarismo, figura central, porém instável.

            Eduardo Bolsonaro conecta o bolsonarismo à nova direita global. Deputado federal por SP, é elo externo, promovendo alianças internacionais e espalhando discurso anti-imprensa e pró-armamento. É mais articulado que Carlos, mais conectado que Flávio, herdeiro do “bolsonarismo globalizado”.

            Jair Renan Bolsonaro é a peça dissonante. Conhecido por escândalos, tenta se posicionar em nichos como jovens e empreendedorismo, mas sua postura errática o torna elo instável. Não possui peso político, mas carrega o sobrenome — o suficiente para garantir palco e proteção.

O Futuro

            Este clã de estrutura feudal aglutinou uma massa heterogênea de servos voluntários — do delírio místico à racionalidade calculista. A alma brasileira, marcada por cicatrizes coloniais, abriga o mito do salvador. Este arquétipo messiânico encontrou abrigo em Jair Bolsonaro, o “guerreiro” alvejado por artistas, jornalistas, intelectuais e políticos. Se todos o atacavam, então era ele o escolhido.

            O impulso inconsciente — a ânsia de entregar o destino a um pai severo — também se encarnou em Lula, o “nine”, outro salvador erigido pelo petismo. O brasileiro não quer um gestor. Quer um herói. E o lulismo, como o bolsonarismo, compreendeu isso.             Sob os escombros da velha política ainda pulsa uma centelha de esperança — A Missão. Não como persona reencenada, mas como movimento autêntico, livre dos vícios que corromperam a República. Surge como aurora de um novo tempo, mirando o florescer das próximas gerações.

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