Os Herdeiros de Lutero e o Mercado da Fé
Irmãos e irmãs, vivemos uma nova idade das trevas — não da ignorância dos livros, mas da corrupção do sagrado. Caminhamos, olhos vendados, rumo à profanação: o céu, agora, tem preço; e a fé, cotação. Em 1517, um monge perturbado pela própria consciência decidiu afrontar os poderes terrenos em nome da verdade eterna. Lutero, com pena firme e alma em chamas, fincou suas 95 teses na porta de uma igreja — e, sem saber, pregou também um espelho diante da cristandade. O que ele denunciava? O comércio da salvação. A teologia da barganha. A fé com preço fixado no balcão da eternidade.
Séculos depois, os herdeiros do protesto parecem ter perdido o fio da herança. Não só se esqueceram da Reforma — cuspiram sobre ela. Hoje, o que se vê no Brasil e em outros cantos do mundo evangélico é a indulgência reencarnada, agora com paletó, microfone e transmissão em HD. Trocaram os pergaminhos por pix, as relíquias por QR code, mas o espírito… ah, esse espírito permanece intacto — podre, lucrativo e disfarçado de milagre.
O que Lutero combateu nas sacristias de Roma agora grita nos púlpitos modernos. Pastores-empresários, apóstolos-animadores de auditório, bispos-celebridades: todos vendendo o sagrado como se fosse sabão em pó. Frascos de sangue “santo”? Temos. Tijolos no céu por um voto de fé? À vontade. Azeite milagroso? Em promoção. O Espírito Santo, hoje, virou marca registrada, com marketing agressivo e metas semanais.
E o mais cínico de tudo? Usam a Bíblia como bula de seus placebos espirituais. Embalam a heresia em versículos fora de contexto, e vendem esperanças como se fossem ações na bolsa da fé.
Lutero virou outdoor, mas ninguém lê suas teses.
Os herdeiros traíram o testamento. Pisaram nas pegadas do reformador e deixaram nelas as marcas do cifrão. A Reforma foi convertida em uma grife: Reforma S/A — com slogan, trilha sonora e direito a conferência internacional. Não há indulgência, dizem. Apenas “sementes de fé”. Como se o céu tivesse virado colheita para quem oferta mais.
Se antes o problema estava nos cofres de São Pedro, agora está nos cofres dos templos. A diferença? Hoje, os fiéis ainda aplaudem.
Mas há algo podre nesse Reino. Um cheiro de mofo espiritual. A religião do espetáculo está falida e só se sustenta porque ainda há quem confunda histeria com unção. O púlpito virou palco, o altar virou vitrine, e o sagrado virou mercadoria. Lutero, se voltasse, rasgaria as vestes. Ou talvez nem entrasse. Seria barrado por não ter pulseira VIP da convenção ou lugar especial perto do palco.
A História — essa senhora cínica e bem-humorada — ri na nossa cara. Repetimos os erros com roupas novas e músicas mais animadas. Mas a essência? A essência fede.
Se algo ainda pulsa no coração da fé, talvez um novo cisma se aproxime. Silencioso, inevitável, corrosivo. Um novo levante contra o abuso do nome de Deus, contra o mercado da alma, contra o roubo da esperança.
E quando esse dia chegar, talvez tenhamos de afixar novas teses. Não em portas de igrejas, mas nas telas que nos envenenam. Não contra o Papa, mas contra os pastores que viraram banqueiros do sagrado.
Talvez a verdadeira fé precise, mais uma vez, explodir em protesto.
Não por Lutero.
Mas apesar dele — e dos que o traíram. Traíram a graça, pois o que não é meu, não posso vender. E o que de graça vem, de graça deve ser dado.