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O Messias de Cada Esquina: Por que o Brasileiro Precisa Acreditar em um Salvador

|ㅤ30 de maio de 2025
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Como a política transforma líderes em figuras redentoras, de Lula a Bolsonaro, revelando nosso vício histórico em personalismo.

Bastiões do saber, mentes inquietas que perscrutam nossas falhas e não se contentam com o consolo fácil — anseiam, com lucidez feroz, por um país mais justo e consciente:

Há no coração do Brasil um altar permanente e invisível, mas imenso. Erguido não em nome de ideias, mas de figuras. Cultuamos homens como quem implora aos deuses por chuvas em tempos de estiagem. Não aprendemos a confiar no processo, apenas no personagem. A democracia, aqui, nunca deixou de ser um palco onde se reencena o velho mito do salvador.

Lula e Bolsonaro são as encarnações mais recentes de uma necessidade atávica: encontrar um pai. Um condutor. Um redentor. Um senhor da casa-grande a quem possamos chamar de nosso. A política brasileira, como uma árvore plantada em solo patrimonialista, dá frutos de lealdade emocional, e não de crítica racional. Como ensinou Sérgio Buarque de Holanda, somos um povo afeito ao personalismo, à cordialidade que confunde o público com o privado, o cidadão com o súdito.

“O aparente triunfo de um princípio jamais significou no Brasil mais do que o triunfo de um personalismo sobre o outro…”, escreveu Buarque.

O brasileiro não espera do Estado uma estrutura impessoal e eficiente. Espera favores. Espera acesso por meio de contatos. Espera a mediação de uma figura que o represente, o acolha, o proteja — mesmo que em troca disso renuncie à sua própria autonomia.

Eis o drama. Eis o ciclo.

Lula, o “Nine”, foi entronizado como o Cristo dos pobres. O operário messiânico que ascendeu do chão da fábrica ao trono da República, trazendo consigo os sonhos de milhões. Não foi apenas eleito — foi beatificado. Seu martírio político, sua prisão, seus discursos ungidos por metáforas religiosas e apelo emocional, tudo isso o inscreveu no imaginário coletivo como o enviado dos céus para libertar os desvalidos. Pai dos pobres, sim — mas também tutor zeloso de uma miséria que não é só material, é mental, é programada.

Na outra margem do rio, Bolsonaro surgiu como o guerreiro do Apocalipse. O pai severo, bruto, violento, mas justo aos olhos dos que viam nele a última linha de defesa contra o “caos”. Seu martírio foi simbólico: um atentado físico, sim, mas sobretudo a narrativa de um homem contra todos — artistas, jornalistas, juízes, professores, acadêmicos, intelectuais. Se era odiado por esses, então, para muitos, só podia estar certo. Senhor feudal dos tempos modernos, cercado por seu clero adulador e uma nobreza de conveniência, vassalos que lhe devem favores e fama. Um messias às avessas — arauto do atraso, do discurso rude e da violência simbólica. Defensor da família? Sim, da sua própria. A dos outros que se virem.

A Fome de um Salvador

Ambos se alimentaram da mesma fome: a necessidade brasileira de terceirizar a esperança. De transferir para um rosto, uma voz, uma figura paternal, a missão de resgatar a pátria. Não importa se pela esperança ou pela fúria; o que conta é a presença de um “salvador”. O que mais assusta é que essa maré, formada por enganos e messianismos reciclados, virou onda — e há quem surfe nela com orgulho, como se não soubesse que todo tsunami começa assim: bonito, mas termina em destruição.

Lívia Barbosa, em O Jeitinho Brasileiro, observa que esse comportamento se articula com nossa tendência histórica a lidar com normas de forma ambígua:

“[…] o jeitinho é sempre uma forma ‘especial’ de se resolver algum problema ou situação difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade”.

Ora, se as estruturas são vistas como obstáculos, se o Estado é percebido como um ente opressor e burocrático, é natural que o brasileiro busque atalhos, intercessores, figuras que o conduzam por fora da regra, pelo afeto ou pelo grito.

“Um outro aspecto que singulariza o jeito do favor é o grau de conhecimento entre as pessoas envolvidas na situação. Enquanto eu posso pedir um jeito a um desconhecido, favor não se pede a qualquer um. […]”.

Veja o fiandeiro da velha política: o amigo do amigo, que conhece alguém nos bastidores, e que vende jeitos como quem oferece milagres — sempre no fio do improviso, nunca no caminho da justiça.

O Jeitinho como Salvação

O jeitinho, então, se torna uma forma de salvação cotidiana. O lulismo é um jeitinho institucionalizado — uma política afetiva, quase maternal, que oferece inclusão simbólica. O bolsonarismo é o jeitinho em sua forma bélica — a política da força, do improviso, do “mito” que fala sem filtro. Ambos compreenderam a alma cordial brasileira: sabiam que antes de programas, o povo queria narrativas. Queria sentir que era parte de algo maior. Queria pertencer. Não buscava um líder — queria um pai, um ombro, um igual. Queria, no fundo, alguém que se parecesse com ele… mesmo que fosse incapaz de governar.

E assim seguimos, como servos voluntários de senhores carismáticos. Como súditos que gritam “mito” em vez de perguntar “plano”. Como eleitores que choram ao ver o líder preso ou ferido, mas não exigem prestação de contas. Como cidadãos que celebram o mártir, mas ignoram o gestor.

A República Inacabada

Essa estrutura política que se máscara de modernidade, mas pulsa com o sangue do feudalismo, é a mesma que impede o florescer de uma verdadeira cidadania. O brasileiro ainda não aprendeu a habitar a república. Ainda não entende o Estado como espaço comum, mas como fazenda ocupada por quem detém o poder simbólico do momento.

No entanto, sob os escombros do desencanto, algo pulsa. Uma centelha, talvez. Uma intuição de que não haverá redenção por meio de líderes encarnados, mas por meio de estruturas transparentes, de políticas consistentes, de uma cultura que valorize a coletividade sobre o carisma.

O Caminho para a Liberdade

Essa nova missão não pode ser messiânica. Não pode ser cultuada como se fosse mais um rosto a venerar. Ela deve ser orgânica. Um movimento que recuse os vícios do passado, que substitua a devoção pela razão, que troque o altar do salvador pela mesa de diálogo. Um novo tempo em que o cidadão não precise mais escolher entre um pai ou outro — mas possa, enfim, ser adulto o bastante para se governar.

Pois só quando pararmos de buscar messias em cada esquina, e começarmos a construir instituições que funcionem para todos — mesmo que sem glamour, sem milagres, sem santos —, estaremos prontos para a liberdade. Até lá, continuaremos órfãos de nós mesmos, esperando que alguém venha nos salvar daquilo que só nós podemos mudar.

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