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O Eterno Lobo da Estepe

"Lobo da Estepe" é uma obra-prima de Hermann Hesse que explora a dualidade humana entre instinto e razão por meio do enigmático Harry Haller.

RESENHA LOBO DA ESTEPE

Resenha de O Lobo da estepe, de Hermann Hesse

“Eu nunca faria parte de um clube que aceita alguém igual a mim como membro”, frase espirituosa do comediante Groucho Marx, não é apenas uma piada autodepreciativa, mas também resume a ideia de que nossos defeitos nos perturbam ainda mais quando os reconhecemos nos outros. Quem nunca ouviu dizer que aquilo que odiamos nas pessoas fala mais sobre nós do que sobre eles? Talvez o personagem principal do livro O Lobo da Estepe pudesse concordar com isso. Ele despreza a sociedade, mas, primeiramente, despreza a si mesmo.

Essa história começa com a descrição de uma pessoa que o conheceu, o sobrinho da proprietária da casa em que Harry Haller se hospeda, que narra com admiração a figura desse homem que lhe causou fascínio e curiosidade. Esse sujeito enigmático não é de fácil interpretação, nem ele mesmo se entende por completo. A história é dividida em três partes: a apresentação inicial feita por quem conheceu o Lobo da Estepe, os manuscritos do próprio Lobo, e a parte final, em que ocorre uma sequência de eventos surrealistas, nos levando a um leque de interpretações. O Tratado do Lobo da Estepe, contido nos manuscritos, não é apenas um manifesto dos introvertidos ou um mergulho na mente introspectiva; é também a apresentação da dualidade entre o lobo e o homem, que iremos acompanhar nessa jornada de autodescoberta.

A psicanálise tem grande influência na obra de Hermann Hesse. Ao pesquisar sobre o assunto, descobri que Hesse se consultava com um discípulo de Carl Jung, além de ter conhecido o autor pessoalmente. Além da curiosidade acerca da mente humana, os dois eram aficionados pela filosofia indiana, que também aparece em alguns momentos da obra, junto com referências a pensadores alemães, o que ajuda a construir a imagem intelectual do personagem. O Teatro Mágico, parte da ambientação, é um lugar entre o consciente e o inconsciente, onde a razão não deve ser utilizada. Os personagens que encontramos ao longo do livro representam aspectos da personalidade de Harry. Hermínia, a cortesã, o convida a ver a vida com outros olhos, o ensina a dançar, a extravasar e a deixar de ser mal-humorado. Ela é como uma figura andrógina de Haller, reflexo dele próprio, e é por isso que ele se sente atraído por ela. Já Pablo, um músico jovem e encantador, é uma figura dionisíaca, representa o mundo dos sentidos e dos instintos e contrasta com o Lobo, de natureza rígida e racional.

A escrita íntima do livro me lembra o melancólico Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, e me recorda de um poema que exprime perfeitamente a sensação de inadequação perante o mundo: Poema em linha reta. O verso “Eu verifico que não tenho par nisto tudo nesse mundo” descreve perfeitamente o Lobo da Estepe. O eu lírico do poema, que enrola os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, que é cômico às criadas de hotel, que é “grotesco, mesquinho, submisso e arrogante”, demonstra a mesma vulnerabilidade de Haller, que sente vergonha de si após fazer uma crítica a um quadro na sala de um casal que conhecia, por não retratar de forma fiel um de seus autores favoritos, Goethe; que se sente indigno da atenção das cortesãs que começa a conhecer; que toda vez repete o quanto é velho e ridículo. Esse tipo de eu lírico cativa o leitor, mesmo que ele não se identifique com o personagem. Tal qual os diversos heterônimos de Fernando Pessoa, Hesse utiliza essa obra para falar dessas criaturas que se sentem insuficientes por desejarem ser de tudo um pouco e por ambicionar experimentar mais do que lhes é possível. Percebemos que Harry Haller não é apenas um homem em crise de meia-idade. Suas questões são universais.

A forma como sua visão da arte é representada também é interessante. Harry Haller apresenta aversão a estilos musicais que fogem do clássico. É fascinado por música erudita, pelo rigor ditado por regras. Cita obras de Mozart e Handel o tempo todo. É uma pessoa presa ao tempo, assim como a música clássica é presa à partitura. Talvez por isso não goste de jazz, ritmo conhecido pelo improviso e liberdade artística. A descrição de Pablo como músico virtuoso e a gradual aceitação do estilo foram inspiradas no contato que Hermann Hesse teve com apresentações de jazz feitas por músicos afro-americanos na Europa dos anos 20.

Avesso à tecnologia, despreza até o gramofone. Diz que essa invenção estraga a arte e a maneira como a música deve ser apreciada. Até o ato de dançar considerava idiota; tudo que era espontâneo era difícil para o personagem. Suas aulas de dança com Hermínia representam uma fuga do modo estático com o qual enxerga a vida. Um momento interessante é quando Haller diz que o “inferno” acontece quando há o choque entre duas culturas ou religiões. Fala que um homem da antiguidade clássica se sufocaria durante os tempos medievais, da mesma forma que um selvagem se sufocaria se fosse inserido na idade contemporânea; completa com: “há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda a salvação e inocência ficam perdidas para ela”. Isso soa extremamente atual em nosso contexto de revolução tecnológica frenética ao mesmo tempo em que debatemos o retrocesso nos princípios morais. Harry Haller vive esse choque. Ele também se vê preso entre duas épocas, já que o livro se passa no período pós-Primeira Guerra, um tempo instável na Europa, e se vê entre dois tipos de personalidades: os intelectuais e a burguesia, que ele rejeita, mesmo que conviva em seu meio. Tem antipatia pelo povo burguês, que considera vão e inútil, e tudo que representam: são as pessoas que frequentavam salões de festa chiques, bebiam bebidas caras, faziam uso de opioides e tinham no luxo uma forma de alienar-se durante os efervescentes anos 20.

Há um momento psicodélico no livro que poderia ter saído da imaginação de um diretor de cinema como David Lynch ou Alejandro Jodorowsky. Há muito simbolismo presente na descrição dos momentos em que o personagem passa sob os efeitos de opioides. Ele se vê diante de infinitas possibilidades. A simbologia parece expressar que ele se encontra dentro da própria mente, onde pode visitar o passado, como quando se recorda da sua ingenuidade juvenil e dos amores que viveu, ou então pode sonhar e ter pesadelos, como quando se vê diante de uma guerra, que suscita sentimentos mistos. Essas aventuras fazem com que ele desperte para si mesmo. Os temas psicodélicos tornaram o livro muito popular nos círculos de contracultura dos anos 60. A obra é irreverente e moderna, destoa do tipo de livro que era escrito em sua época.

É curioso o quão humano o Lobo da Estepe pode ser, por mais que represente tudo do que o ser humano pretende fugir (seu lado visceral). Durante uma de suas loucas alucinações, há um momento em que Haller observa o lobo sendo domado por um homem vestido com roupa circense. A cena causa espanto quando ocorre o contrário: o lobo doma o homem, aterrorizando Haller, que vê o ser humano sendo adestrado pelo animal. Tudo é simbólico. A forma como a domesticação a que o ser humano é submetido pode fazê-lo esquecer que ele não passa de um animal. E, às vezes, em certas situações, esses sentidos são aflorados, como no amor e na guerra. Em certo momento, Harry Haller, mesmo sendo um antibelicista e conhecido por não compactuar com a tragédia da guerra, admite que esse é o resultado da luta por ideias racionais, e que a “simplificação exagerada da vida pelos teóricos pode ocasionar a violação da própria vida”. O amor seria, então, a entrega vulnerável à inegável possibilidade de frustração. O ato final do livro parece ser uma tentativa de destruir uma parte de nós que não gostamos que exista. Uma forma de autocensura. Nesse enredo insano, resta a figura de Mozart instigar o personagem a deixar de ser patético e começar a rir da própria vida, a se levar menos a sério.

Em tempos de popularização da autoficção na literatura, podemos lembrar como um grande autor faz isso de maneira impessoal. Não fazendo do personagem um fantoche de si próprio ou um bode expiatório de seus defeitos, mas criando uma figura independente, que sobrevive às décadas. O Lobo da Estepe permanece à espreita. Não apenas observando Harry Haller ou o resto da alcateia que se identifica com ele. O Lobo da Estepe continua aqui e atravessa o tempo porque sua escrita não se restringe ao zeitgeist, ao problema dito urgente que viraliza na internet, cujo prazo de validade é diretamente ligado ao tanto de indignação que o assunto pode causar.

O destino do Lobo é um mistério. O que sabemos é que o personagem está preso no ciclo infindável da busca por caos. É dito que, toda vez que ele se sente muito confortável com algo, busca uma mudança. Sente que já não é mais ali onde deve estar. Talvez o sentimento de incerteza seja o verdadeiro consolo do personagem. Não é um livro para qualquer um. O autor dizia que os leitores que não gostaram da obra pareciam compreendê-la mais do que os entusiastas. Dizia que não é a história de um homem em desespero, e sim de um homem que crê. Hesse não queria a ruína do leitor, mas sim mostrar uma saída.

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