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Homo Religiosus – Ainda Habita em Nós o Sedento do Sagrado?

|ㅤ18 de julho de 2025
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O conceito de Homo Religiosus revela como a busca pelo sagrado ainda habita o ser humano, mesmo na era da razão e do individualismo.
Representação simbólica do Homo Religiosus, o homem em busca do sagrado na modernidade, inspirado na obra de Mircea Eliade.

O conceito de Homo Religiosus revela como a busca pelo sagrado ainda habita o ser humano, mesmo na era da razão e do individualismo.

            Caros Legentes, o que se segue é um texto de natureza ensaística, que não pretende oferecer respostas fechadas, mas abrir frestas no pensamento. Trata-se de uma provocação, uma travessia entre sombras e luzes, entre o sagrado esquecido e a razão triunfante. Mais do que informar, este ensaio busca inquietar, lançar perguntas que ecoam em nosso tempo e em nosso interior. Afinal, o homem é sempre o mesmo; o que muda são os acessórios que ele carrega ao longo da história.


O que constitui o fenômeno religioso?

Essa pergunta se estende como véu denso sobre a história da consciência humana. Alguns dirão que a religião é fé, outros afirmam que é um elo entre a criatura e o transcendente, há ainda os que a reduzem à estrutura simbólica de um tabu. Cada definição, à sua maneira, tenta nomear o inominável. Mas, afinal, existe em nós um homo religiosus; ou tudo isso não passa de vestígio em ruínas?

            Responda quem puder. O fato é que somos, inegavelmente, moldados por uma ancestralidade sedenta do sagrado. Mesmo o homem contemporâneo, tão aferrado à razão, tão apaixonado por sua autonomia, carrega em suas entranhas rastros da nostalgia por algo que escapa à lógica, algo que transcende.

            Na cosmovisão arcaica, a realidade não nascia do acaso, mas da irrupção de um princípio absoluto, mítico, supra-humano. O mundo era sagrado porque fora criado por entes que transcendiam o visível. A existência, por conseguinte, só se tornava legítima quando vinculada ao gesto primordial desses seres fundadores. Viver era repetir o ato inaugural. Cada rito, cada símbolo, cada espaço, cada tempo: ecos de um evento primeiro.

            Nesse cenário de repetição sagrada, o tempo não era linear: era retorno. A vida desenhava-se em ciclos, onde o passado mítico era constantemente atualizado. O tempo profano, esse que devora e passa, era apenas intervalo entre as manifestações do eterno. Para o homem das origens, viver era estar em constante busca pela permanência no tempo divino. É essa forma de existência que professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo, Historiador e romancista romeno, Mircea Eliade denomina de homo religiosus.

            Mas quem é esse homem sedento do ser? É aquele que não concebe sua vida desvinculada do sagrado. Não se trata apenas de crer em deuses, mas de ser afetado, tocado, convocado por um real que o transcende. Para o homo religiosus, toda ação possui valor ontológico na medida em que reproduz o arquétipo divino. Ele não cria o tempo, ele o revive. Não inaugura valores, reencena os gestos fundadores.

            Contraposto a ele está o homem moderno. O dessacralizado. O histórico. O solitário. Aquele que decidiu lançar-se na existência sem referências míticas, que optou por ser o único sujeito de sua história. Ele rechaça o sagrado porque o percebe como obstáculo à sua liberdade. Só será livre, diz, quando tiver matado o último deus.

            Entretanto, a liberdade conquistada pela negação da transcendência não o liberta de si. Pelo contrário, o aprisiona no instante. Sua história é linear, mas sua existência é trágica. Ele habita um tempo irreversível, onde nada retorna, onde tudo se desgasta, onde o sentido se esvai. A frase de Heráclito “não se entra duas vezes no mesmo rio”, ressoa como epitáfio do mito e do rito. O rio corre, mas a alma naufraga.

            Eliade nos ensina que o sagrado se manifesta (hierofania) onde o profano não espera. Uma pedra, uma árvore, um ponto cardeal, tudo pode se tornar o centro do mundo. A aldeia nasce em torno desse centro. A casa reproduz o cosmos. O templo é o elo entre os mundos. Mas para que esses símbolos tenham força, é preciso que exista o homem que os reconhece. Sem o homo religiosus, a religião não é mais do que casca.

            Ora, mesmo no seio da modernidade, ainda há ecos desse homem sagrado. Suas sombras dançam nas festas populares, nos ritos inconscientes, nas narrativas que nos formam. O mito continua vivo, ainda que velado. Os gestos continuam carregados de sentido, mesmo que já não saibamos por quê. O sagrado resiste nos interstícios da história.

            Eliade nos convida a considerar: o que ganhamos ao abolir o sagrado? Tornamo-nos mais livres ou mais ansiosos? Mais racionais ou mais perdidos? Ao matar os deuses, matamos também os referenciais? E o que permanece, senão a angústia de existir sem âncora?

            Talvez o homo religiosus não seja uma espécie extinta, mas um modo de ser soterrado pelo ruído moderno. Talvez ele ainda respire dentro de nós, nos silêncios, nos vazios, nas saudades inexplicáveis. Talvez sejamos, mesmo sem querer, criaturas em busca do eterno.

            E se, no fundo, a religião não for uma crença, mas uma estrutura ontológica? E se o sagrado não for um ente, mas uma condição? E se o homo religiosus não for um tipo humano do passado, mas o próprio humano em sua essência?

            É possível que tenhamos esquecido quem somos. Mas o esquecimento não anula a verdade. Ele apenas nos deixa com saudade dela.

            Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, afirma: “Qualquer que seja o contexto histórico em que se encontre, o homo religiosus sempre acredita que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas se manifesta neste mundo, santificando-o e tornando-o real.”

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