Como a Internet Transformou Transtornos em Estilo de Vida
Diletos leitores de espírito inquieto,
Quando a realidade se torna insuportável, o delírio aparece como refúgio. Não raro, é uma estratégia psíquica para sobreviver à dor. Arthur Schopenhauer, com sua lucidez brutal, dizia que a loucura nasce quando a memória se rompe e o fio da razão se desgasta — não por acaso, muitos escolhem inconscientemente a ilusão quando o real se converte em peso demais. E hoje, caros leitores, vivemos uma era onde esse rompimento deixou de ser patológico para se tornar tendência.
Vivemos em tempos que a insanidade não apenas deixou de ser corrigida — ela passou a ser premiada. O que outrora seria tratado no silêncio do consultório ou no acolhimento de uma clínica terapêutica, hoje é exibido como estilo de vida nas vitrines das redes sociais, entre curtidas, monetização e aplausos. O fenômeno dos bebês reborn é o mais recente sintoma dessa patologia cultural: uma boneca de vinil, fria e sem alma, ocupando o lugar de uma criança real — tudo em nome da “liberdade afetiva”.
Mas será mesmo liberdade esse apego ao irreal? Ou estamos diante da mais sofisticada forma de alienação moderna?
Mas não se trata de liberdade. Trata-se de colapso emocional, de fuga da realidade, de um vazio tão profundo que precisa ser preenchido com a simulação grotesca de um parto e a maternagem de um objeto. Trata-se de gente ferida, adoecida, não tratada, encenando laços com o inanimado porque já não consegue lidar com a frustração, a exigência e o caos do humano real.
O bebê reborn é o filho ideal: não chora, não reclama, não cresce, não exige, não devolve a angústia da existência. É a fantasia da maternidade perfeita numa era que rejeita o sofrimento como parte do viver.
A Banalização dos Transtornos Mentais
A psicóloga Valéria Barbieri alerta que a banalização dos transtornos mentais é uma forma de apropriação da linguagem clínica pela cultura popular, uma distorção perigosa. Segundo ela, oscilações emocionais naturais, como angústia e ansiedade, hoje são patologizadas e romantizadas — o que transforma sintomas em identidade e transtornos em estilo de vida.
A psiquiatria, como adverte o Dr. Guido Palomba, foi assassinada pelas indústrias farmacêuticas e pelos protocolos. O diagnóstico virou performance, o sofrimento virou conteúdo, o desequilíbrio virou nicho de mercado.
Basta abrir o TikTok para testemunhar a cena: mulheres adultas simulando partos, amamentações e saídas em família com bonecos hiper-realistas nos braços, enquanto os comentários gritam: “Que fofo!”, “Sonho de consumo!”.
Não, não é fofo. É um sintoma alarmante de dissociação afetiva. É o delírio sendo premiado com engajamento. Quando a cultura recompensa o delírio, ela reforça o colapso. Isso não é arte, não é terapia, é sintoma de uma projeção disfuncional que se alimenta da mentira para fugir da dor.
Do Transtorno de Identidade ao Simulacro da Maternidade
Esse fenômeno não é isolado. Ele é o próximo degrau de um processo em curso: Primeiro veio o transtorno de identidade. Depois o delírio de espécie — com pessoas se identificando como gatos, cães, criaturas fictícias. Agora, chegamos ao ápice do simulacro: a maternidade artificial, onde o amor é projetado em plástico e o real é rejeitado como ameaça.
Como já dizia Baudrillard, no hiper-real, o simulacro não apenas substitui a realidade — ele a elimina. O mais grave, no entanto, não é apenas psicológico. É espiritual. Há um desequilíbrio mais profundo quando o humano é substituído pelo sintético, quando a alma se conecta mais facilmente com o inanimado do que com o outro de carne, suor e lágrimas.
Vivemos o tempo do anti-laço, da fuga de toda alteridade. No lugar do filho, um boneco. No lugar da relação, a projeção. No lugar da maternidade, o espetáculo. E isso tem raízes que, para além da psicologia, mergulham no engano espiritual, no afastamento radical da verdade e do amor real.
Legislando Sobre o Óbvio
O deputado Zacharias Calil já se mobiliza para conter abusos: propôs um projeto de lei que aplica multa de até 20 salários mínimos a quem utilizar bonecas reborn para obter benefícios destinados a crianças reais.
Sim, chegamos a este ponto — é preciso legislar sobre o óbvio, porque a fronteira entre realidade e delírio já se desfez. O autor de A Culpa É das Estrelas, John Green, também rompeu o silêncio:
“Precisamos parar de romantizar as doenças mentais.”
Sua fala é um sopro de lucidez num tempo onde o sofrimento se torna estético e a dor, rentável. A doença mental virou tema de trend, camiseta, bio de Instagram. A alma humana virou meme, e o abismo da desconexão, paisagem ordinária. Como historiador — e como ser humano —, deixo um alerta:
Se você continuar aplaudindo o colapso, amanhã haverá quem mate por um boneco, quem enterre o boneco, quem se mate por ele. E você, provavelmente, ainda vai chamar isso de amor.
Mas amor não é isso. Amor é relação, é alteridade, é carne e espírito, é dor e construção. Amor não se fabrica em vinil. Acorde. A alma humana foi feita para se vincular ao real. Não ao boneco. Não ao sintético. Não ao delírio.
A epidemia dos bebês reborn não é moda. É um grito de socorro cultural. E enquanto todos aplaudem, estamos à beira do abismo.