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A Anomalia Jurídica Brasileira – A Constituição de 88 e a Onipresente Cultura do Malandro

|ㅤ10 de junho de 2025
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A anomalia jurídica brasileira: como a Constituição de 1988 e o excesso de leis alimentam a cultura do malandro e a ineficiência do Estado.

É de conhecimento quase universal, ao menos para aqueles que se aventuraram a ler um pouco por conta ou sentaram para ouvir os lamentos dos operadores do direito, que a nossa Constituição Federal de 1988 é um monumento absurdamente extenso, sendo um dos melhores exemplos possíveis para o conceito de prolixidade. Uma Carta Magna que, em sua ânsia por detalhar cada minúcia da vida nacional, acaba por se perder em meandros e especificidades que fariam corar a soma de textos normativos de nações inteiras.

Tal complexidade, contudo, não é um privilégio exclusivo do nosso texto maior; ela se derrama sobre os demais códigos e leis que pretendem reger a sofrida terra de Santa Cruz. Temos um Código Civil extenso, um Código de Processo Civil que rivaliza em volume, um Código Penal remendado e uma legislação esparsa que se multiplica cada vez mais, criando um emaranhado normativo quase intransponível.

A Anomalia Jurídica Brasileira

Mas o que essa verborragia legislativa tem a ver com o que ouso chamar de anomalia jurídica brasileira? E, antes que o leitor se impaciente, o que diabos seria essa tal anomalia?

É algo, na verdade, dolorosamente simples, quase óbvio, mas que talvez tenha escapado à sua reflexão cotidiana, soterrada pela avalanche de notícias sobre crises políticas e escândalos econômicos. Refiro-me a quantidade absurda, quase surreal, de faculdades de direito que pululam em cada esquina, despejando bacharéis no mercado aos milhares a proliferação de tribunais, comarcas, varas especializadas e juizados que se espalham pelo território como uma teia; à vastidão dos códigos e leis já mencionada; e, por fim, ao labirinto kafkiano de garantias e recursos processuais que prometem um devido processo legal, mas frequentemente entregam apenas a eternização da disputa.

Ora, se um observador externo, talvez um marciano recém-chegado, analisasse friamente a quantidade de mecanismos, a capilaridade das instituições judiciárias, o exército de funcionários públicos togados ou não, e a profusão de leis detalhistas, ele inevitavelmente concluiria que o Brasil possui um dos sistemas jurídicos mais sofisticados e eficientes do planeta.

Afinal, temos uma comarca para quase cada lugarejo, um advogado — ou vários — para cada possível área de litígio em cada esquina, um código ou uma lei para cada problema imaginável. No papel, na teoria fria da norma, é tudo perfeito, um primor de engenharia legal.

A Realidade Versus a Teoria

Entretanto, se você, caro leitor, ligou a televisão alguma vez nos últimos vinte ou trinta anos, se navegou pelas redes sociais em qualquer momento da sua existência digital ou simplesmente conversou com um vizinho sobre um processo que se arrasta há décadas, sabe perfeitamente que a descrição do parágrafo anterior soa, no mínimo, esquizofrênica.

realidade vivida, a experiência concreta do cidadão comum e até mesmo do operador do direito, desmente brutalmente a promessa de eficiência contida na arquitetura complexa do nosso sistema.

Como a dura experiência cotidiana nos demonstra implacavelmente: o excesso de cargos, a plethora de garantias, a inflação legislativa e a miríade de recursos têm o efeito justamente contrário ao pretendido. Em vez de celeridade, temos uma morosidade absolutamente irracional, processos que se arrastam por gerações, consumindo recursos, paciência e a própria fé na Justiça. Em vez de segurança jurídica, temos uma sensação generalizada de impunidade, tanto por parte da população honesta, que se vê desprotegida, quanto por parte dos indivíduos criminosos, que aprendem a navegar com maestria pelos corredores e subterfúgios do sistema. E, como cereja nesse bolo indigesto, vemos a prisão sendo efetuada, muitas vezes, contra pessoas pobres, por crimes de menor potencial ofensivo, enquanto faccionados, corruptos e criminosos de colarinho branco, extremamente bem-sucedidos em seu nefasto “ofício”, usam e abusam das diversas instâncias, das garantias hipertrofiadas e dos direitos distorcidos para continuarem soltos, zombando da sociedade e do próprio Estado que deveria puni-los.

Comparação com Países Desenvolvidos

É quase um exercício de masoquismo intelectual comparar nossa realidade com a de nações desenvolvidas. Absolutamente todos os países que alcançaram um patamar civilizatório e econômico minimamente decente ostentam sistemas jurídicos mais simples, mais enxutos, com menos garantias formais talvez, certamente com menos cargos e, crucialmente, com menos recursos protelatórios.

E, adivinhe só o resultado dessa simplicidade? Menos abusos por parte do próprio Judiciário, maior segurança jurídica para cidadãos e empresas, menores taxas de criminalidade e, quando a punição vem, ela é efetiva e exemplar para os verdadeiros criminosos.

E por que isso acontece? Em parte, porque a própria cultura dessas sociedades gera menos conflitos levados a juízo — um fator cultural que, infelizmente, também nos afeta negativamente, com nossa inclinação quase patológica para a litigância (mas esse é um assunto para outros textos).

Mas, principalmente, porque os conflitos que inevitavelmente chegam aos tribunais encontram soluções mais óbvias, mais simples, mais práticas e, acima de tudo, mais rápidas nos seus respectivos códigos e procedimentos. Não há espaço para a chicana, para o recurso do recurso, para a filigrana processual que serve apenas para adiar o inevitável ou garantir a impunidade.

A Constituição Americana vs. A Brasileira

Nesse contexto, soa quase patético ouvir especialistas brasileiros, entrincheirados em suas cátedras e em seus dogmas, criticarem a Constituição americana por ser concisa demais, por não garantir explicitamente uma lista infindável de direitos e deveres sociais.

Não lhes ocorre parar para pensar que a Carta deles, com suas emendas pontuais, perdura firme desde 1787, enquanto a nossa Constituição mais longeva, a do Império, mal alcançou 65 anos antes de ser substituída? Qual dos dois países, libertos do jugo colonial em épocas relativamente próximas, alcançou maior desenvolvimento, maior estabilidade institucional, maior prosperidade para seu povo?

Obviamente, a trajetória de sucesso dos Estados Unidos não se explica unicamente por seu sistema jurídico — fatores culturais, geográficos, econômicos e históricos desempenham papéis cruciais. Contudo, parece inegável que um sistema jurídico bem estruturado, com regras claras, respeito aos contratos, proteção à propriedade e, fundamentalmente, que permite alterações substanciais e céleres para se adaptar à passagem do tempo e às novas demandas sociais, é um pilar de suma importância para o desenvolvimento sustentado.

O Estado Moderno e a Base Jurídica Brasileira

Afinal, o conceito de Estado moderno, como o conhecemos hoje, só se sustenta sobre bases jurídicas sólidas. E quando a base jurídica de um país é, por natureza, inflada, excessivamente rígida, e fundamentalmente complexa, torna-se óbvio que o desenvolvimento socioeconômico não se realizará em sua plenitude, emperrado por um emaranhado de normas e procedimentos que mais atrapalham do que ajudam.

A “Solução” Brasileira: Inchar Ainda Mais a Máquina

De forma simplificada, e talvez até grosseira, percebe-se que a “solução” encontrada historicamente para lidar com nosso sistema jurídico complexo e mal pensado — um sistema que julgou necessário inscrever em mármore constitucional que o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro será mantido na órbita federal (sim, caro leitor, isso é real, consta no artigo 242, parágrafo 2º, das Disposições Transitórias da nossa Constituição “Cidadã”) — foi inchar ainda mais a máquina pública.

Criou-se um exército de juízes, promotores, defensores, procuradores, analistas, técnicos, assessores, cada qual com suas prerrogativas, seus penduricalhos e suas demandas corporativas.

O resultado? Apenas se criou outro problema gigantesco, ampliando os gastos já obscenos do Estado brasileiro com uma burocracia jurídica que, em grande medida, alimenta a si mesma, sem entregar à sociedade a contrapartida esperada em termos de justiça efetiva.

Conclusão: Um Sistema que Precisamos Mudar

Basta analisar, sem paixões ideológicas, qualquer sistema jurídico de qualquer país desenvolvido para constatar que o nosso seguiu e ainda segue na direção diametralmente oposta.

E — aqui me permito inserir minha opinião pura e simples — nosso sistema jurisdicional, com sua complexidade paralisante e sua cultura permissiva com a protelação e a impunidade seletiva, tornou-se um dos maiores entraves ao desenvolvimento pleno da nação.

Ele não apenas dificulta a vida do cidadão comum e encarece o custo de se fazer negócios, mas também corrói a confiança nas instituições, alimenta a cultura do “malandro”, do “jeitinho”, daquele que busca a brecha na lei em vez do cumprimento do dever.

Diante desse quadro desolador, torna-se necessária a discussão de um novo pacto social, de uma nova constituinte. Um pacto que, despido das utopias irrealizáveis e das minúcias paralisantes da Carta de 88, possibilite mudanças reais, estruturais e corajosas para um país que precisa, desesperadamente, mudar.

E mudar muito.

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