O avanço das facções revela a submissão do Estado brasileiro ao crime organizado e o enfraquecimento de suas instituições legais e policiais.
Em uma coluna anterior, tratei da forma como as organizações criminosas e seus diversos ramos estão cada vez mais inseridos no espaço público, de maneira praticamente indiferente às instituições sérias e legítimas. O crime organizado já atua em diversos setores, de postos de gasolina à venda de Wi-Fi em comunidades dominadas, e também penetra instâncias públicas, órgãos governamentais, estruturas municipais e estaduais de forma descarada. O que antes era visto como corrupção eventual, pontual, hoje se tornou uma engrenagem sistêmica, com regras próprias, alianças duradouras e articulações quase institucionais. Hoje, quero aprofundar um ponto ainda mais grave: o Estado brasileiro não é apenas conivente com isso, tampouco se limita a ser um mero copartícipe das funções empregadas pelas facções. Ele é, em grande medida, submisso a elas.
Já é trágico o fato de entes paralelos ao Estado terem o domínio que têm e estarem em rápido crescimento. O PCC se tornou uma organização internacional, com presença em 28 países, e já está sendo discutido em debates políticos portugueses, tendo em vista a ascensão da facção em território lusitano. Tudo isso ocorre com omissão por parte do Estado brasileiro, que não realiza ações duras e eficazes contra os agentes do crime organizado que agora infernizam a vida de outros países também. Estamos dando um atestado para que essas organizações continuem suas ações. Se isso não for submissão aberta e óbvia ao crime, não sei o que é.
Um exemplo recente, já em solo brasileiro, ilustra nossa situação trágica: a prisão e posterior liberação do cantor Poze do Rodo. A cena foi transmitida como um espetáculo grotesco. O artista foi solto diante de uma multidão que o ovacionava, não como músico, mas como símbolo da idolatria ao traficante, à figura do fora da lei. Enquanto isso, a polícia, aquela mesma que deveria garantir a ordem e o cumprimento da lei, apenas assistia. Agentes públicos se comportando como espectadores passivos de um show de aberrações institucionais. O artista foi libertado por decisão do desembargador Peterson Barroso, expondo os policiais a uma humilhação pública na qual sequer poderiam agir. Para completar esse enredo bizarro, o próprio desembargador foi elogiado publicamente por Mauro Davi, filho do criminoso Marcinho VP, como se fosse uma espécie de bênção simbólica, um selo de aprovação.
E por que ele foi solto? Qual o motivo jurídico que embasou a decisão? O argumento foi de que o processo conduzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro seria indevido, com ações consideradas desproporcionais. Mas essa explicação, ainda que travestida de linguagem técnica e processual, é, no fundo, uma repetição nauseante de um padrão conhecido. Você já ouviu essa história inúmeras vezes: criminosos de alto escalão, muitos deles altamente perigosos, com envolvimento em crimes que ultrapassam os limites do aceitável, sendo libertados por “erros processuais”, por pequenas falhas técnicas que raramente são debatidas em profundidade na imprensa, mas que funcionam como chaves mágicas que abrem as portas das celas.
Longe de mim ser um defensor ferrenho contrário aos ritos processuais; eles são parte essencial de qualquer sistema jurídico minimamente sério. Porém, quando o Código de Processo Penal garante tudo para o criminoso e nada faz pela segurança pública e, no caso brasileiro, pela segurança nacional e internacional, já é hora de reconsiderar sua aplicação prática. Não adianta nada nos atentarmos rigidamente aos ritos processuais somente quando favorecem criminosos perigosos, enquanto ignoramos injustiças óbvias contra adversários políticos ou réus de menor poder aquisitivo.
Esse tipo de ocorrência revoltante, que acontece centenas de vezes todos os anos (especialmente com criminosos de baixa patente), revela pelo menos três aspectos cruciais do nosso sistema judiciário, e cada um deles merece uma análise detalhada. Primeiro: nossos códigos são extremamente complexos, extensos e ineficientes. A legislação brasileira foi moldada para uma sociedade que não existe mais. Segundo: nossas leis são brandas, excessivamente garantistas, voltadas quase que exclusivamente à proteção do réu. Terceiro: o Judiciário brasileiro não busca justiça no sentido mais direto do termo, mas sim a manutenção de uma formalidade estética e ritualística. Valoriza-se mais o “como” do que o conteúdo material do fato.
A legislação que rege nosso país hoje está, naturalmente, submetida à Constituição Federal, que é o texto máximo da legislação brasileira, onde encontramos todas as normas básicas que devem nortear o trabalho dos legisladores em nível municipal, estadual e federal. Não existe a possibilidade de uma lei contrariar a Constituição; isso representaria uma ruptura com o pacto vigente. O problema é que, entre todas as constituições do mundo, a nossa é a segunda mais extensa e já nasceu grande demais. Ela surgiu com 250 artigos, que centralizaram excessivamente os poderes em Brasília. E, diante disso, eu pergunto: cabe o mesmo Código Penal em Goiás e no Rio de Janeiro?
Além disso, a Constituição de 1988, com seus aparatos jurídicos garantidores de direitos excessivos em resposta ao regime ditatorial, ainda nos causa problemas. No continente latino-americano, em geral, os traumas são similares. Traumas de um período que já passou há quase 40 anos nos deixaram reféns de criminosos de altíssima periculosidade. Não se trata de negar a importância de ferramentas como o habeas corpus e o habeas data, mas sim de repensar como conciliar esses dispositivos de proteção contra abusos estatais com mecanismos eficazes de proteção da população contra criminosos. Evidentemente, com as extrapolações atuais de nossas cortes e os altos níveis de violência no país, vê-se que nenhum dos dois objetivos está sendo plenamente alcançado com o modelo garantista vigente.
Em segundo lugar, temos um problema inerente à nossa legislação penal: as penas são fracas demais diante da brutalidade dos crimes cometidos. Criminosos responsáveis por homicídios, latrocínios e assaltos armados frequentemente não recebem punições compatíveis com a gravidade de seus atos. A prisão perpétua, instrumento presente em diversas democracias consolidadas, é expressamente vedada pela nossa Constituição, o que já limita significativamente a capacidade punitiva do Estado diante de crimes hediondos. Mas o problema vai além: mesmo dentro das penas já reduzidas, o sistema oferece mecanismos de progressão e remição que acabam premiando o criminoso com benefícios desproporcionais. Um indivíduo condenado por assassinato pode reduzir sua pena simplesmente por “boa conduta” ou por ler obras literárias na prisão, como se o simples ato de folhear um livro fosse prova de ressocialização efetiva. Isso não apenas enfraquece o senso de justiça da sociedade, como transmite uma mensagem perigosa: cometer um crime no Brasil pode até levar à prisão, mas não por muito tempo. É uma lógica invertida, onde a vida do criminoso vale mais que a da vítima, e onde o Estado se mostra mais preocupado com a reintegração simbólica do infrator do que com a dor permanente dos que ficaram para trás.
Para finalizar, temos a visão predominante entre nossos juristas, que é, no mínimo, decepcionante. Muitos encaram o título de juiz como se fosse um cargo místico, um sacerdócio acima do bem e do mal. No entanto, o termo “juiz” significa literalmente aquele que julga, o que pressupõe responsabilidade moral e discernimento prático, e não apenas fidelidade cega a textos ditos intelectuais que, muitas vezes, não dialogam com a realidade do país. O que vemos, majoritariamente, são pessoas de concepções abstratas e limitadas, cuja ideia de justiça se restringe à aplicação dogmática daquilo que eles próprios arbitraram como certo. Pouco importa o que diz a sociedade, a vítima ou até mesmo a Constituição. O que vale é o que está consolidado na bolha hermética de uma elite jurídica que se considera imune à crítica. Os recentes casos julgados pela Suprema Corte escancaram isso de forma quase cínica.
Não é exagero dizer que, hoje, a justiça brasileira é um produto disfuncional. E os dados não mentem: homicídios, furtos, roubos e toda sorte de crimes violentos seguem ocorrendo em níveis alarmantes. E, mesmo diante desses números, não se vê uma atuação firme do Estado. Ao contrário, busca-se o formalismo pelo formalismo. A liturgia jurídica passou a valer mais do que o conteúdo. O rito processual tornou-se o espetáculo que agrada a uma plateia específica, formada por membros da própria casta jurídica e por aqueles que orbitam sua influência. Prestígio, reconhecimento, ego e carreirismo guiam as decisões de muitos que deveriam zelar pelo bem comum. E, no fim, quem paga a conta são os cidadãos comuns, expostos à criminalidade crescente, ao medo constante e à impunidade rotineira.
Talvez o mais assustador de tudo isso seja a naturalização desse colapso. A sociedade, de modo geral, parece ter desistido. Aceitou que o crime é inevitável. Que o tráfico é parte do cotidiano. Que o bandido da comunidade é também o “benfeitor”, o “patrão” que garante gás, internet e segurança local. O discurso deixou de ser “combater o crime” e passou a ser “negociar com o crime”. O tráfico deixou de ser exceção e virou estrutura. Hoje, o crime impõe condições, fecha ruas, define quem entra e quem sai de bairros inteiros. Temos um Estado paralelo que convive, de mãos dadas, com o Estado formal. É uma simbiose onde só um lado ganha, e não é o lado da lei.
E se você ainda acha que isso é exagero, pense no seguinte: hoje existe, no formulário de triagem de presos, um campo específico onde o detento pode indicar em qual ala deseja ficar, se com o PCC ou com o CV. Isso mesmo. O próprio MC Poze, num momento tragicômico, marcou que queria ir para a ala do Comando Vermelho. E isso foi respeitado. O sistema aceitou. O agente carimbou. O Estado reconheceu. Que outro nome dar a isso senão rendição institucionalizada?
Para finalizar, o que piora essa situação toda é o enfraquecimento das forças policiais por parte do próprio Estado. Aquele que deveria empoderar os agentes que protegem a população fazem de tudo para enfraquecê-los. Um policial que dispara sua arma em serviço é mais investigado do que muitos traficantes. E agora, o STJ determinou que quem colide com uma viatura policial durante uma fuga não pode ser penalizado por dano ao patrimônio público, o que representa um desrespeito claro às autoridades policiais.
A verdade dura e incômoda é que estamos entregando a chave da nossa nação ao crime organizado. E o fazemos sem resistência, sem debate, sem indignação. Rimos, fazemos memes, dançamos ao som de músicas que exaltam assassinos e fingimos que isso é normal. Enquanto o Estado brasileiro ceder sua soberania a entes separatistas, não há como falar em segurança nacional, muito menos em progresso real.
Na obra Brasil, o País do Futuro, de Stefan Zweig, o escritor europeu via em nossa terra uma promessa de civilidade, tolerância e harmonia. Um local onde a paz reinaria. Hoje, essa imagem parece um retrato distante e idealizado, uma utopia enterrada sob o peso de uma realidade dominada pela impunidade e pela violência institucionalizada. A pergunta que resta é: Será que algum dia teremos o Brasil tão sonhado pelo austríaco, ou nos deixaremos ser tomados pela barbárie perpetuada pelo crime organizado?
A presença do crime organizado nas estruturas públicas brasileiras
🌍 1. O crime organizado brasileiro já atua em mais de 30 países
Facções como o PCC (Primeiro Comando da Capital) deixaram de ser um problema apenas nacional. Segundo investigações da Polícia Federal e estudos de segurança internacional, o grupo está presente em pelo menos 28 a 30 países, com rotas de tráfico e operações financeiras sofisticadas, principalmente ligadas à exportação de drogas para a Europa e África. Em Portugal, há registros de cooptação de criminosos locais por membros do PCC, gerando preocupação diplomática e de segurança internacional.
Fonte: DW Brasil – Como o PCC se tornou uma organização internacional
⚖️ 2. A infiltração das facções em órgãos públicos já foi mapeada por órgãos federais
A Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério da Justiça já produziram relatórios indicando que facções criminosas conseguem acessar contratos públicos, influenciar decisões políticas locais e até financiar campanhas eleitorais em determinadas regiões, especialmente onde o Estado tem menor presença. O Tribunal de Contas da União também reconhece que há evidências de uso de empresas laranjas ligadas ao crime para fraudes em licitações, e a situação é considerada de risco alto em alguns estados do Norte e do Sudeste.
Fonte: BBC Brasil – Facções criminosas já controlam parte do poder público no Brasil
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