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Adorno, televisão e censura: a Indústria Cultural na ditadura militar brasileira

|ㅤ29 de julho de 2025
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A Indústria Cultural na ditadura militar moldou consciências via televisão. Com base em Adorno, analisamos como o entretenimento virou arma ideológica.
Cena de um televisor antigo transmitindo programação na ditadura militar brasileira, simbolizando a Indústria Cultural na ditadura militar

A Indústria Cultural na ditadura militar foi usada como engrenagem simbólica para anestesiar a crítica e reforçar o poder — Adorno ajuda a explicar como.

            As décadas de 60 e 70 no Brasil configuraram um período de sombras espessas, onde a mudez não era escolha, mas imposição. O país mergulhou numa engrenagem silenciosa de controle, na qual as palavras eram vigiadas e as ideias, sufocadas antes mesmo de ganharem forma. Após o golpe civil-militar de 1964, instaurou-se uma engenharia do poder cuja vocação ultrapassava a coerção física ou jurídica, seu propósito mais profundo era esculpir consciências, domesticar afetos e reconfigurar os horizontes simbólicos da população.

            O Estado, ali, tornou-se curador dos sentidos, selecionando o que podia ser dito, pensado e sentido, sob o verniz de ordem, progresso e moralidade. Nesse contexto, a cultura, sobretudo a veiculada pelos meios de comunicação de massa, tornou-se peça estratégica no xadrez ideológico dos generais. O rádio, outrora soberano, começou a ceder espaço à televisão, que emergia como ferramenta de unificação nacional e dominação simbólica. Mais que um aparelho, o televisor tornou-se uma janela cuidadosamente vigiada por onde o povo via o mundo conforme os moldes do poder.

            Para Theodor W. Adorno, pensador da Escola de Frankfurt, a chamada “Indústria Cultural” não é apenas a organização sistemática da arte em larga escala, mas um mecanismo de padronização e adestramento psicológico. A cultura deixa de ser espaço de criação e crítica, transformando-se em produto domesticado, empacotado e vendido como distração. Nesse processo, as diferenças se apagam, os questionamentos são neutralizados e o sujeito é reduzido à condição de consumidor passivo. O entretenimento, longe de ser inofensivo, funciona como engrenagem do sistema capitalista, e, por extensão, também autoritário, ao oferecer uma ilusão de liberdade enquanto molda consciências.

            Ao lançar os olhos sobre o contexto, é possível perceber o enraizamento da lógica adorniana no próprio solo brasileiro. O desenvolvimento vertiginoso da televisão nas décadas de 1960 e 1970, com forte respaldo estatal, desde os sistemas de micro-ondas em 1968 até os acordos com a Embratel nos anos seguintes, não ocorreu por mero capricho tecnológico. Era parte de um projeto de unificação discursiva e centralização simbólica. O governo militar, ciente do poder formador da imagem e da palavra, investiu na massificação da TV como meio de propagar valores, atenuar tensões sociais e fabricar consentimento.

            Nesse cenário, o entretenimento assumiu uma função estratégica. O que se transmitia pelas telas não visava provocar reflexão, mas entorpecer, manter o espectador imerso em tramas repetitivas, emoções previsíveis e valores compatíveis com os interesses do regime. O Estado, ao ocupar o papel de curador e financiador da cultura midiática, passou a selecionar o que poderia ou não chegar aos olhos e ouvidos do povo. O discurso oficial se disfarçava de diversão, e a crítica era silenciada sob a maquiagem do espetáculo.

            Esse projeto estava sustentado por uma série de interesses políticos e simbólicos claros, que se alinham diretamente à crítica adorniana:

            O governo buscava moldar o imaginário coletivo, suprimindo vozes dissonantes e promovendo valores como o nacionalismo exaltado, a ordem social e o combate à “ameaça comunista”. A cultura veiculada pela televisão ajudava a cimentar esse discurso, amortecendo qualquer potencial subversivo no espírito público.

            Ao difundir o mesmo conteúdo televisivo em todo o território nacional, apagaram-se nuances culturais locais e práticas tradicionais, consolidando uma estética homogênea e conveniente ao poder central. Uma “identidade brasileira” moldada em estúdio.

            Ao beneficiar redes como a Globo com concessões e acordos estruturais, o regime estabeleceu parcerias com os principais veículos de comunicação, garantindo fidelidade editorial e evitando críticas internas. A imprensa, em boa parte, foi transformada em extensão do Estado.

            Enquanto as instituições democráticas ruíam, e a repressão fazia vítimas nos porões do regime, o povo era mantido distraído com programas de auditório, novelas, festivais e espetáculos cuidadosamente roteirizados. A alienação era parte do plano, e não um efeito colateral.

            Ao associar padrões de consumo à imagem do progresso e da modernidade, especialmente através da publicidade na televisão, o regime impulsionava a economia capitalista e promovia a ilusão de uma classe média ascendente, satisfeita e apaziguada.

            Todo esse processo materializa, com rigor inquietante, as críticas feitas por Adorno: a arte transformada em mercadoria, a cultura reduzida a entretenimento, e o indivíduo condicionado a consumir sem questionar. No Brasil daqueles anos, a Indústria Cultural não apenas floresceu, foi cultivada com esmero por mãos que entendiam perfeitamente o poder que ela carregava.

            Dentro dessa lógica, o entretenimento oferecido não visava fomentar pensamento, mas diluí-lo em narrativas simplificadas, heróis prontos, trilhas sonoras sedutoras e enredos previsíveis. Tudo aquilo que Adorno denunciava como anestesia coletiva se fez presente nos lares brasileiros, das novelas à publicidade, dos festivais à cobertura “neutra” dos noticiários. Enquanto o regime calava artistas críticos e censurava obras dissonantes, patrocinava uma cultura dócil, domesticada, moldada para confortar e distrair. O Estado deixava de ser apenas repressor, tornava-se produtor cultural.

            Portanto, ao entrelaçar o contexto histórico brasileiro com a lente filosófica de Adorno, evidencia-se que a expansão da Indústria Cultural nos anos de chumbo não foi um fenômeno espontâneo, mas orquestrado com objetivos políticos nítidos. A televisão, símbolo máximo desse processo, operou como catalisadora de uma cultura moldada para manter a ordem, anestesiar a crítica e promover uma ideia de progresso que ocultava a violência institucional. A teoria adorniana, longe de ser uma abstração acadêmica, revela-se profundamente atual e eficaz para compreender esse capítulo da nossa história: um tempo em que a imagem sorria enquanto a liberdade sangrava. E se há algo que essa análise nos ensina é que, quando a cultura deixa de ser resistência, torna-se cúmplice, e nesse pacto silencioso, o poder encontra seu palco e sua plateia.

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