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Dados Biográficos do Finado Marcelino, um clássico ignorado de um autor baiano que é uma ode ao empreendedorismo

É lugar comum, na visão repleta de estereótipos provenientes do ambiente academicista, da intelectualidade hegemônica e da sociedade brasileira em geral, que a Bahia seja vista como um Estado exageradamente alegre, festivo demasiado, caricatural e repleto de sincretismo religioso num prisma de interpretação coletiva em “sentido positivo”; que também seja visto um Estado atrasado e miserável e com uma população paupérrima, preguiçosa e improdutiva, que dependa de uma política fiscal expansiva disfuncional e que necessite dos recursos de um rompimento do pacto federalista quase inexistente no Brasil, e que também seja classificado, em sua grande maioria, como um polo de retirantes e de migrantes, fornecedor de força de trabalho de baixo valor agregado para outras regiões do nosso país tais quais Sudeste e Sul, que seja um ente federativo culpado por favelizar todas as grandes regiões ao redor e que também grande parte do seu território esteja situado no semiárido brasileiro com vegetação xerófila típica e com arquitetura característica das casas de taipa e de blocos cozidos situadas em estradas arenosas num prisma de interpretação coletiva em “sentido negativo”. Ou, se não bastasse, até mesmo quando haja uma combinação destas classificações esdrúxulas em arranjos aleatórios de fluxos de vozes e de contra-vozes, o povo baiano, ora retratado como carnavalesco, ora como analfabeto, ora como subdesenvolvido em termos intelectuais, ora como dependentes do fisiologismo político e de compra de votos, está fadado ao atraso, pois a sua sina, principalmente nos séculos XX e XXI, é de ser um pária nacional e que a sua existência nunca será tratada como a de um indivíduo senhor de si, inteligente, empreendedor, proativo e culto. Mas quando olhamos para o passado, mesmo sob a chaga do escravagismo, do tráfico humano e do atentado contra as liberdades civis dos pretos transportados de um continente distante e escravizados também aos mandos e desmandos na plaga característica do coronelismo patriarcal dos senhores de Engenho, podemos perceber que a Bahia também contribuiu com os “maiores oradores do Brasil Imperial”, no dizer de José de Alencar, e com grandes artífices da palavra, lentes, doutos e eruditos no nascente Brasil Republicano.

Tomados por um desalento incipiente e uma nostalgia diletante, hoje só resta ao povo baiano viver das cinzas de um passado remoto ou de estereótipos impostos ou de neologismos formadores do tipo ideal forjados nos grotões acadêmicos. Porém não cabe ao povo baiano e quiçá ao brasileiro constatar que o maior romancista nascido na Bahia e que escreveu a maior obra literária deste Estado está profundamente esquecido e legado ao ostracismo. Pois bem, antes de o nome de Herberto Sales vir à lume com o seu monumental romance “Dados Biográficos do Finado Marcelino”, faz-se mister ressaltar que houve inúmeras contribuições de intelectuais baianos para a formação do múnus cultural brasileiro.

Assim sendo, podemos constatar que a Bahia produziu para o beletrismo brasileiro nomes como os de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, notório liberal; de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, o verdadeiro patrono da Educação Nacional; de José Maria da Silva Paranhos, o Visconde de Rio Branco e genitor do chamado “pai da moderna diplomacia brasileira”, o Barão de Rio Branco; de Ruy Barbosa, Águia de Haia, nome que dispensa maiores apresentações; de Augusto Teixeira de Freitas, um dos maiores juristas da história do Brasil e um dos proponentes de um projeto moderno para os padrões da época de um Código Civil; do monumental historiador Pedro Calmon; e de Anísio Teixeira, um dos pais da moderna educação brasileira; para a saúde pública nomes como o do Doutor Juliano Moreira, infelizmente conhecido no Brasil como sinônimo de loucura e de casas manicomiais e do Doutor Ernesto Carneiro Ribeiro, um médico a serviço dos mais pobres e um dos maiores estudiosos de doenças tropicais e seus impactos duma relação orgânica entre meio ambiente e pobreza; para a infraestrutura os irmãos Rebouças, engenheiros pretos que desenvolveram obras fundamentais de infraestrutura no Brasil e em Portugal; por último, para a literatura, em geral, Gregório de Matos, o Boca do Inferno; Castro Alves, o bardo nacional e que teve por epíteto “O Poeta dos Escravos”; Luiz Gama, um verdadeiro artífice do Abolicionismo e porta-voz contra a tirania escravagista tirânica estatal, além de Jorge Amado; o segundo escritor mais traduzido do Brasil; de João Ubaldo Ribeiro, de Adonias Filho, de Xavier Marques e de Lindolpho Rocha e tantos escritores. Entretanto o nome de Herberto Sales torna-se cada vez mais irrelevante e desconhecido para a literatura baiana e nacional.

Escritor baiano nascido em Andaraí, região da Chapada Diamantina, pupilo do padre Luiz Gonzaga Cabral no tradicional Colégio Antônio Vieira em Salvador, este mesmo educador que viu algum tipo de talento também em Jorge Amado, Herberto Sales abandonou os estudos aos treze anos de idade para desenvolver inúmeras funções como garimpeiro, atendente de farmácia, farmacêutico, empreendedor em um curtume, atendente em cartório e outras profissões. Toda essa experiência em sua vida pregressa aflorou a sua verve literária, vista pelo supracitado padre em sua tenra idade e, posteriormente, descontinuada e posta em dúvida acerca da sua capacidade por Sales, fê-lo escrever o romance épico regionalista “Cascalho”, acerca das condições entre os garimpeiros e os patrões vistas num espectro antropológica, filológica e sociológica. Tendo 27 anos na época, Sales escreveu este opúsculo espesso para participar de um concurso com o fito de revelar novos talentos. Com o resultado negativo, o autor achou que não tivesse talento suficiente e terminou destruindo o manuscrito, queimando-o.

Não sabia o autor andariense que o famoso lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda dispunha de uma cópia ainda íntegra da obra e tinha o objetivo de estudar a respeito de vocábulos adstritos a regiões específicas.

Após todo esse imbróglio, “Cascalho” foi publicado com muitas expensas. Posteriormente à sua publicação, o livro foi um sucesso de vendas com várias tiragens e este foi saudado pelos grandes intelectuais da época como um grande romance épico regionalista e Sales foi alçado como um herdeiro de Honoré de Balzac. Entretanto, para alguns críticos, “Cascalho” foi aceito com algumas ressalvas, principalmente para o grande crítico Sérgio Milliet.

Então, Sales fez as correções necessárias ao romance e publicou-o novamente. Vale ressaltar também que, durante esse ínterim, Sales trocava correspondências com outro grande escritor, Marques Rebelo, que identificou um certo talento de jornalista e de cronista em Sales e o fez ser seu colega de redação em O Cruzeiro, jornal hoje extinto, mas deveras importante em sua época. Seguidamente ao reconhecimento por “Cascalho”, Sales não publicou algo de relevante por longos 17 anos, hiato que fez muito bem para o seu amadurecimento como escritor, até quando, em 1961, publicou o seu segundo romance, “Além dos Marimbus”, livro que trata sobre a tênue relação entre madeireiros e grileiros na Chapada Diamantina e que fora recebido com bastante entusiasmo, até mesmo por João Guimarães Rosa, que o denominava o “livro que iria ler até o seu último dia de vida”, por exemplo. Nesses dois primeiros romances, o enfoque de Herberto Sales era analisar as relações humanas por uma ótica regionalista de um Brasil profundo.

Mas em 1965, em seu terceiro romance, Sales coroou a sua intermitente carreira literária com um verdadeiro libelo contra esse lugar comum estereotipado de Salvador, a cidade da Bahia, a Bahia e as suas gentes ao retratar, de forma memorialística, as peripécias de um rico empresário, conhecido como o último gentleman de uma Salvador romântica. O “finado Marcelino” realmente existiu e tinha por nome verdadeiro “Francisco Araújo” e tal qual o romance foi o tio verdadeiro de Herberto Sales, retratado pelo seu sobrinho-narrador sem nome. Se nos seus dois primeiros romances, o elã narrativo era próprio de um romance legitimamente naturalista aos moldes de um Honoré de Balzac ou de um Gustave Flaubert, “Dados Biográficos do Finado Marcelino” evoca uma narrativa de cunho barroco e intimista memorial tal qual Marcel Proust. Assim como “Em Busca do Tempo Perdido”, o narrador reconstrói memórias de forma não-linear e digressiva e as retrata com extrema delicadeza repleto de sentimentos írritos de afeto parental e de boas lembranças de quando foi visitar a primeira vez o tio em Salvador, põe em xeque falsas memórias e tenta preservar a memória coletiva por diferentes pontos de vistas e opiniões díspares. Já sabemos desde início que Marcelino torna-se finado, num dos começos mais memoráveis da história da literatura brasileira, e que cabe ao sobrinho, que também emigra de Andaraí para Salvador em busca de melhores oportunidades, procurar sabe de fato quem foi o “tio Marcelino”, o finado tio do narrador-personagem.

Convém frisar que Sales, apesar de não ter instrução formal e de também não ser um erudito, apresenta uma prosa fluida, elegante e límpida em “Dados Biográficos do Finado Marcelino” e nas suas obras como um todo. Tinha tão somente a quinta série primária, como gostava de ressaltar, e à primeira vista, como sói perceber, seus textos sem maiores adornos parecem simples e superficiais. Entretanto, numa segunda e posteriores leituras, é possível constatar que ela retrata o mais profundo da alma humana com reflexões filosóficas e existenciais densas através da análise de situações cotidianas. Através de uma extrema investigação pelo âmago da sua alma como narrador, o liame de uma investigação imparcial foi tomando forma e foi tecido na figura de um empresário, o legítimo self-made man do new money, de pouca instrução educacional, autodidata, mecenas das artes e que simplesmente aciona o “botão de dane-se”, no dizer dos mais jovens, para a sociedade em redor. Ao invés de validação externa, tio Marcelino embebece-se de alta cultura colecionando objetos de arte, ouvindo música clássica e tendo uma suntuosa biblioteca, viaja aos quatro cantos do mundo e contempla o desapego nas relações interpessoais. Por causa do seu estilo de vida e fazendo jus ao lema de que “sucesso é uma ofensa pessoal no Brasil”, no dizer do maestro Tom Jobim, Marcelino é vítima de comentários vexatórios a respeito do seu padrão de vida, da sua condução nos negócios e de como enriqueceu, também sofre calúnias a respeito da sua relação com a sua irmã, que torna-se a sua governanta, e comentários indecorosos a respeito da sua orientação sexual. Porém, mesmo com o seu grande legado deixado em termos empresariais, sua grande fortuna refletida em seus grandes objetos de arte, em seu grande palacete e em sua vasta biblioteca percebemos que a alma de Marcelino não pôde mais descansar em paz.

Numa cidade em que a extrema pobreza, a demanda por políticas públicas a conta-gotas e a miséria são cantadas como sendo um faro de esperança para os seus gentilícios, a evocação da figura de Marcelino vai de encontro ao que se conhece como “baianidade”. Se a “baianidade” é sinônimo de pobreza, com Marcelino torna-se sinônimo de “arrojo nos negócios, de inovação, de inclinação para a alta cultura, de cordura e de fino trato, de resiliência e de antifragilidade”, sentimentos mais conhecidos pela literatura econômica como animal spirit. Portanto, depreende-se que a leitura deste monumental romance faz-se deveras necessária, inclusive para aquelas pessoas que primam pelo empreendedorismo, por ser um afresco de como um cidadão que gera riqueza para a sociedade é tratado pelos agentes da burocracia estatal e paraestatal, pelos seus pares, por pessoas que fazem parte do seu círculos de amizade e que se denominam “amigos” e que se passa em uma cidade que tudo conspira contra o ato de ser um empresário.

Em sendo, após o grande assombro que “Dados Biográficos do Finado Marcelino” representou paras as letras nacionais e por sua unânime recepção, advieram inúmeras outras obras versáteis e inclassificáveis que vão desde história contrafactual e especulativa, perpassando por inúmeras obras infantojuvenis singelas até à ficção científica satírica, culminando na sua indicação à Academia Brasileira de Letras em 1971. Em concomitância, foi diretor do importante Instituto Nacional do Livro, assumiu como adido cultural em Paris nos anos 80 do século XX. Na década de 90 do século XX, ao final da sua vida, resolveu tornar-se recluso em São Pedro da Aldeia, localidade no Rio de Janeiro. Com a sua passagem em 1997, o finado Herberto Sales, diferentemente de Marcelino, foi criminosamente legado ao ostracismo e o seu falecimento sequer foi lembrado até mesmo na Bahia, seu Estado natal.

Autor: Max Avelar

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