Na série American Gods, de Neil Gaiman, o conceito de “deuses modernos” revela uma verdade provocativa: não adoramos mais figuras mitológicas, mas sim poderes que moldam nossas vidas e controlam nossas vontades. De uma forma sombria e aterradora, a sociedade brasileira atual encontra eco nessa ficção, onde figuras políticas e a mídia parecem ganhar status de “deuses”, cultivando seguidores, definindo realidades e reforçando um ciclo de adoração que determina o rumo do país.
O Brasil vive uma era de adoração cega aos “deuses da política”, personagens que, ao longo dos anos, transformaram seguidores em devotos. São figuras que não representam apenas um cargo, mas um ideal — ou um líder messiânico que promete salvar a nação de seus males. Ao observarmos os recentes ícones políticos, Lula e Bolsonaro, percebemos a personificação dessa ideia. Como deuses de lados opostos, eles inspiram uma fé quase religiosa, que se recusa a enxergar seus erros ou falhas.
Ao tornarem-se “deuses” da política, os líderes populistas se tornam intocáveis aos olhos de seus seguidores. Não importa o quão grave seja o escândalo ou quão dúbia seja a decisão tomada — os defensores justificam, relativizam e, acima de tudo, mantêm-se fiéis. O governo Lula, por exemplo, é famoso pelo título dos “ministérios dos Jacks” e, mesmo assim, a mídia abafa os escândalos, enquanto os seguidores batem palmas. A crítica que surge aqui é de uma sociedade que não consegue questionar seus ídolos, perdendo a capacidade de análise e discernimento em prol de uma devoção vazia. Esse fenômeno perpetua a polarização extrema e a falta de diálogo, onde qualquer crítica é vista como heresia.
No fim das contas, ao dar poder absoluto a esses “deuses políticos”, o povo se coloca em uma posição de dependência, delegando seu destino a uma figura de autoridade e se afastando da autonomia. Esse é o caso quando um indivíduo promete “cerveja e picanha”; um verdadeiro deus da mentira e do engano. Uma democracia verdadeira exige questionamento e fiscalização constante, e não adoração cega.
No universo de American Gods, a deusa da mídia controla a percepção das massas, manipulando o que é real e fabricando novas figuras de adoração. No Brasil, essa realidade está mais presente do que nunca, especialmente em um momento em que o governo tenta exercer controle sobre as redes sociais, moldando o que pode ou não ser dito. Surge também o “novo deus” Drex, a moeda digital, com um grande poder de controle sobre a vida dos cidadãos. Não é novidade que, assim como a mídia é capaz de construir reputações, também é capaz de destruí-las em segundos. Acontece a todo momento nas terras tupiniquins.
A mídia brasileira, ao longo dos anos, vem exercendo esse papel: manipula narrativas, cria vilões e heróis conforme os interesses de quem controla essa narrativa e, em alguns casos, assume o papel de “divindade julgadora” da moral e dos valores nacionais. Hoje, as redes sociais funcionam como templos modernos onde, em busca de validação, o brasileiro deposita seu tempo, suas opiniões e, muitas vezes, sua paz de espírito. Temos o exemplo das “bets”, que arruinaram financeiramente milhões e geraram dependência para outras milhões de pessoas. Tornam-se dependentes de uma plataforma que define não apenas o que pensam e desejam, mas também o que sentem.
A tentativa do governo brasileiro de controlar o conteúdo nas redes sociais é um reflexo claro do desejo de centralizar a narrativa. Isso não apenas interfere no direito de expressão, mas cria um sistema em que o que é “aceito” pode ser decidido por alguns poucos. Assim como em American Gods, a “mídia-deusa” não apenas reporta a realidade, mas a constrói, e esse poder de criação e destruição faz dela uma das forças mais influentes do Brasil moderno.
Em uma sociedade onde os “deuses” políticos e a mídia controlam tanto a percepção quanto as escolhas do povo, surge a necessidade de uma “libertação espiritual”. Assim como os antigos deuses da mitologia, esses “deuses modernos” exigem sacrifícios — a capacidade de questionar, de pensar por si próprio e de não se deixar influenciar pela narrativa dominante. Alguns vão “sangrar” para que outros possam, enfim, pensar com suas próprias mentes.
Para o Brasil, é hora de despertar e perceber que colocar sua fé em figuras intocáveis, sejam elas da política ou da mídia, é abrir mão da própria liberdade. Um povo que questiona é um povo que avança. Em vez de atribuir natureza divina a figuras ou instituições, é preciso construir uma sociedade em que cada indivíduo possa ser o verdadeiro arquiteto do seu destino, sem depender de “deuses” que apenas se aproveitam da adoração para moldar uma realidade conveniente. Nossa democracia é violentada todos os dias, nossa justiça mantida como refém, enquanto o destino do nosso país está, mais do que nunca, em nossas mãos. Assim como em American Gods, o futuro não pertence aos deuses que construímos, mas ao povo que, se despertar dessa devoção cega, poderá finalmente recuperar o poder que lhe pertence por direito.